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Aposentadoria rural dispara, com lentidão de inscrição em cadastro

 Foto: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil

O governo anda a pssos lentos no cadastramento dos trabalhadores rurais, uma regra imposta pela Reforma da Previdência, em vigor desde novembro de 2019, enquanto disparam os benefícios para essa categoria, classificada de segurado especial. A reforma determinou a comprovação do exercício da atividade no campo para que o trabalhador tenha acesso à aposentadoria como segurado especial. Isso é feito por meio do Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS).

Pela regra, quando o banco de dados atingisse 50% de cobertura desses trabalhadores, considerando a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE, só seria concedida aposentadoria rural a quem estivesse no cadastro. No entanto, quase seis anos depois da norma entrar em vigor, isso não ocorreu.

Sem atingir essa meta, as aposentadorias continuam sendo concedidas com base em autodeclaração e checagem de documentos. A comprovação do exercício da atividade rural, por meio de documentos ou testemunhal, é exigida na concessão da maioria dos benefícios previdenciários, como aposentadoria, auxílio-doença rural e salário-maternidade. Entre as exceções estão pensão por morte e acidente de trabalho, que não exigem carência.

A implementação desse cadastro é de responsabilidade da Dataprev, estatal processadora dos benefícios previdenciários e assistenciais. A empresa presta serviços ao INSS, ligado ao Ministério da Previdência. Procurada, a estatal disse que caberia ao ministério responder sobre o tema.

O Ministério da Previdência informou que não é possível informar quantos trabalhadores rurais estão inscritos no CNIS. Em nota, a pasta disse apenas que o cadastro está em processo de implementação.

“Cabe observar que o aproveitamento de dados oriundos de outros cadastros de governo para compor o cadastro de segurados especiais é atividade complexa que exige a resolução não apenas de questões técnicas, mas também conceituais, a fim de assegurar que a nova base represente, com fidedignidade as diversas situações dos segurados ao longo da sua vida laboral”, diz o ministério.

A exigência da utilização do cadastro oficial foi feita com o objetivo de reduzir fraudes. Até 2019, os sindicatos da categoria podiam emitir uma declaração atestando o exercício da atividade rural do segurado, o que gerava benefícios irregulares para quem nunca trabalhou no campo, por exemplo.

Isso acabou em 2019, com a medida provisória (MP) 871, transformada em lei. Ela foi editada no contexto da Reforma da Previdência mais ampla — que não mudou, porém, regras para a aposentadoria rural.

Ficou definido que o então Ministério da Economia, que reuniu várias pastas, implementaria o cadastro de segurados especiais no CNIS, em parceria com o Ministério da Agricultura e outros órgãos da administração pública federal, estadual e municipal. Esse cadastro deveria estar funcionando plenamente em janeiro de 2023.

Brecha para fraudes

Entretanto, durante a tramitação da medida provisória, sindicatos rurais atuaram e conseguiram no Congresso ampliar o prazo para o uso da autodeclaração até que o CNIS alcançasse uma cobertura mínima de 50% — o que ainda não ocorreu.

Segundo especialistas, a sistemática de autodeclaração abre brechas para fraudes e concessões irregulares de benefícios. Mesmo com a queda da população rural e a mecanização do agronegócio, o Brasil tem crescimento recorrente de concessões de aposentadorias rurais, um rombo silencioso que acende alerta fiscal.

A categoria ficou de fora da Reforma da Previdência que fixou idade mínima de aposentadoria de 62 anos (mulher) e 65 anos (homem). Os segurados especiais podem se aposentar aos 55 anos (mulher) e 60 anos (homem).

Segundo estudo inédito do especialista Rogério Nagamine, com base no Anuário Estatístico e Boletim da Previdência Social, a concessão de benefícios rurais subiu de 775.716 em 2019 para 1,190 milhão em 2024. No período, a alta foi de 53,43%.

Considerando apenas as aposentadorias rurais, as concessões passaram de 294.847 em 2019 para 412.776 em 2024. A participação desse tipo de benefício no total de concessões alcançou 31,6%.

Enquanto isso, as aposentadorias dos trabalhadores de áreas urbanas caíram de 1,102 milhão para 892.584 no ano entre 2019 e 2024.

O que chama a atenção no levantamento é que entre 2022 e 2024 as concessões de aposentadorias rurais ficaram no patamar de 400 mil por ano, o que não acontecia desde 1994.

— Essa explosão contrasta com a queda da população rural e o encolhimento do emprego rural no setor agropecuário. Os dados acendem um alerta sobre a qualidade dos cadastros, a efetividade dos controles e o risco fiscal embutido em cada aposentadoria irregular — destacou Nagamine.

Segundo ele, o quadro é preocupante diante das mudanças demográficas e rápido processo de envelhecimento da população brasileira. A projeção é que o pico de aposentadorias como um todo deve ocorrer entre 2030 e 2040, período em que a redução dos trabalhadores em idade ativa tende a gerar mais pressão sobre o Orçamento federal.

Dados do IBGE mostram que a população ocupada na agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e aquicultura, em 2024, caiu 3,2% em relação ao ano anterior, para 7,9 milhões de trabalhadores. Na comparação com 2012, quando o IBGE passou a adotar nova metodologia, esse universo alcançava 10,2 milhões de pessoas, a queda foi de 22,8%.

Só no ano passado, os gastos com a Previdência atingiram R$ 938,5 bilhões. O volume corresponde a quase 43% do total do Orçamento federal, o que consome recursos de outras áreas prioritárias, como investimentos. O gasto com benefícios rurais em 2024 atingiu R$ 196,9 bilhões, alta de 6% em relação à despesa registrada no ano anterior.

Decisões judiciais

Para especialistas, os números dos benefícios rurais apontam para a existência de irregularidades e fraudes. Uma das suspeitas recai sobre o mecanismo do Atestmed, que permite a concessão automática de auxílio-doença com base apenas em atestados médicos digitais. A ferramenta, em vigor desde 2023, permitia a concessão de benefício por incapacidade temporária para afastamentos de até 180 dias. Só recentemente, o governo restringiu o prazo para 30 dias.

Outra causa são as decisões judiciais, segundo o especialista Paulo Tafner, diretor do Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social (IMDS).

— As decisões judiciais têm extrapolado os limites definidos em lei, expressando, mais uma vez, que o Judiciário vem extrapolando seus poderes e interferindo em esferas de outro Poder — afirmou. — O governo tem sido extremamente leniente quanto à concessão de benefícios. Fala o tempo todo de fazer pente-fino, mas não conseguiu até agora estabelecer procedimentos rígidos para concessão.

Fonte: O Globo