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Senado pode soltar 249 condenados do 8/1 e reduzir eventual pena de Bolsonaro

O novo texto que ganhou tração no Senado como alternativa ao PL da Anistia em discussão na Câmara dos Deputados pode levar à liberdade imediata de 249 réus condenados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), inclusive em casos com penas de até 17 anos. A proposta, articulada por lideranças como o presidente da Casa, Davi Alcolumbre (União-AP), prevê três mudanças centrais: redução das penas para os crimes de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, proibição da aplicação simultânea desses dois tipos penais e criação de um novo tipo penal mais brando para quem atuou sob influência de tumulto ou multidão.

Baseado no projeto já protocolado pelo senador Alessandro Vieira (MDB-SE), a iniciativa busca conter o avanço do texto em debate na Câmara, que prevê uma anistia ampla e irrestrita e poderia beneficiar o próprio ex-presidente Jair Bolsonaro, apontado pelo Supremo como um dos organizadores dos ataques, além de outros réus e financiadores. No Senado, o tratamento proposto é distinto: os benefícios se restringem a quem não participou do planejamento ou financiamento dos crimes contra a democracia, ou seja, aos considerados “massa de manobra”. Já mentores e articuladores continuariam sujeitos, em tese, às penas mais severas previstas na legislação penal.Um exemplo é o caso da cabeleireira Débora dos Santos Rodrigues, conhecida por pichar a frase “Perdeu, mané” durante os ataques de 8 de janeiro. Condenada pela Primeira Turma do STF a 14 anos de prisão, ela já havia cumprido 2 anos e 11 meses em prisão preventiva e hoje está em prisão domiciliar. Se aprovado, o novo texto poderia beneficiá-la com a progressão para o regime semiaberto.

Além disso, o texto propõe a criação de um novo tipo penal específico para atos contra o Estado Democrático de Direito praticados por indivíduos influenciados por uma multidão, como foi o caso de parte dos réus do 8 de janeiro. Badaró pondera, no entanto, que dificilmente esse novo crime substituiria os já aplicados pelo STF (golpe e abolição). “É mais provável que, se aprovado, esse novo tipo penal seja usado apenas em processos futuros. Dificilmente alguém se beneficiaria por essa ideia”, resume.

Embora Bolsonaro não seja beneficiado diretamente pela redução das penas, o criminalista Marcelo Crespo, coordenador do curso de Direito da ESPM-SP, avalia que o texto pode favorecê-lo pela regra que determina que, se golpe e abolição forem cometidos no mesmo contexto, apenas o mais grave será considerado. Nesse caso, Bolsonaro responderia apenas por golpe de Estado, com pena de 4 a 12 anos, evitando o acúmulo de sanções.

Para Crespo, essa absorção alcançaria não apenas Bolsonaro, mas também outros acusados de integrar os núcleos de articulação do golpe. Ele explica que, ao tornar obrigatória a fusão dos dois crimes, o texto facilita, na prática, a redução das penas para réus com papel central nos ataques.

“Disfarçada de técnica legislativa, ela pode funcionar como um atalho jurídico para reduzir a responsabilização de figuras centrais, afetando diretamente investigações e processos em curso. Esse detalhe, aparentemente técnico, pode ter impacto direto em casos de réus considerados articuladores”, alerta.

O também criminalista Renato Stanziola concorda que o texto dá munição jurídica para as defesas de lideranças envolvidas nos atos, e pondera que uma eventual correção de excessos deveria partir do próprio STF, com revisão das penas já impostas. “O caminho mais legítimo seria o STF reavaliar os casos em vez de o Congresso intervir com mudanças penais tão direcionadas”, afirma.

Além das consequências jurídicas, os dois juristas chamam atenção para os efeitos simbólicos de uma eventual aprovação do texto. Para Crespo, alterar a lei nesse momento pode enviar uma perigosa mensagem de leniência. “O ordenamento jurídico não pode e não deve ser moldado ao sabor das conveniências políticas do momento. Os instrumentos democráticos não podem ser usados para deturpar, enfraquecer ou destruir a democracia”, afirma.

Disputa entre Câmara e Senado

Na Câmara, o presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos- PB), segue pressionado a pautar o requerimento de urgência sobre o tema, enquanto o texto alternativo enfrenta resistência, especialmente do líder do PL, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que defende a anistia ampla. “Vamos continuar focados. Isso parece uma estratégia para desviar o foco do movimento da anistia. Vamos fazer uma ofensiva em várias frentes”, afirmou.

O deputado Chico Alencar (Psol-RJ) pondera que a proposta do Senado não pode interferir no processo judicial em curso no Supremo, que vem tornando réus diversos participantes dos atos golpistas. “Seria uma espécie de obstrução à Justiça, caso a tramitação de um projeto de lei tivesse esse tipo de interferência”, afirmou. O parlamentar defende que o tema seja debatido com transparência: “Vamos fazer audiências públicas e jogar essa discussão para a participação da sociedade.”

No Senado, o ambiente também é dividido. O senador Carlos Portinho (PL-RJ) afirma que o texto alternativo não impede o avanço do PL da Anistia e defende que o perdão deve ser amplo. “Não tenho problema em apoiar, mas nada anula nossa luta pela anistia”, disse. O senador Sérgio Moro (União Brasil-PR) também declarou preferência pela anistia.

Já Jorge Kajuru (PSB-GO) se opõe à proposta da Câmara e defende, até aqui, o texto do Senado. Para ele, é preciso distinguir quem foi influenciado pela multidão daqueles que agiram de forma premeditada. “O que eu concordo, em parte, aqui no Senado, é com os benefícios que o texto pode trazer para pessoas como aquela moça que escreveu ‘perdeu, mané’ e foi condenada a 14 anos. Isso é desproporcional e inaceitável”, afirmou.

Autor da proposta original, o senador Alessandro Vieira considera que as resistências ao texto não se sustentam. Para o parlamentar, o projeto não trata de impunidade, mas de justiça. “As penas aplicadas na maioria dos casos me parecem exageradas e insuficientemente fundamentadas. Vamos ver como será daqui pra frente”, conclui.

Fonte: Estadão