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Por que nos sentimos menos sociáveis com o tempo? Estudo traz uma pista — e ela está no cérebro

Sociabilidade é fenômeno complexo, influenciado também por perdas simbólicas e concretas  Foto: natus111/Adobe Stock

Por que muitas pessoas tendem a se tornar mais reclusas e desinteressadas em interações sociais com o passar dos anos? Um novo estudo da Universidade Tecnológica de Nanyang, em Cingapura, sugere que a resposta pode estar menos no “jeito de ser” e mais nas “mudanças estruturais do cérebro ao longo da vida”.

No estudo, publicado na revista científica Plos One, os pesquisadores afirmam que a redução da sociabilidade pode ser influenciada por alterações na conectividade funcional entre áreas cerebrais. Em outras palavras, a hipótese levantada é de que os circuitos do cérebro mudam com a idade, e isso afeta a forma como nos relacionamos.

“A redução da sociabilidade com a idade não é apenas uma questão de personalidade ou estilo de vida — ela pode ter uma base neurofuncional”, escrevem os autores.

Para chegar a essa conclusão, os cientistas analisaram dados de 196 participantes com idades entre 20 e 77 anos, que passaram por exames de ressonância magnética funcional em repouso. Depois, responderam a um questionário sobre traços de personalidade, incluindo um indicador de sociabilidade — definido ali como a capacidade de se comunicar bem, manter interações sociais e lidar com emoções nesses contextos.

As análises apontaram dois movimentos principais no cérebro:

  • Conexões que aumentam com a idade: mais fortes entre regiões límbicas e insulares — áreas envolvidas no processamento de emoções negativas e da chamada “dor social”, como a exclusão ou a rejeição. Isso pode indicar uma maior sensibilidade a interações sociais negativas com o passar dos anos.
  • Conexões que diminuem: especialmente entre a rede frontoparietal (relacionada ao foco e controle) e a default mode network (ligada à autorreflexão e à identidade), além de conexões entre regiões subcorticais e parietais, envolvidas em linguagem e percepção sensorial. Essas perdas podem dificultar o raciocínio social, a autoestima e a espontaneidade nas interações.

“As redes identificadas neste estudo sugerem que, com a idade, há uma reorganização funcional que pode tornar as pessoas mais sensíveis a interações sociais negativas e menos aptas a interpretar ou responder a situações sociais de forma espontânea”, afirmam os autores.

Um estudo interessante, mas com ressalvas

Apesar de instigante, o estudo não deve ser interpretado como uma sentença de isolamento social com o envelhecimento. Para a geriatra Claudia Suemoto, professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), os achados levantam boas questões — e até promissoras —, mas ainda é cedo para abraçar conclusões.

Um dos principais pontos de alerta é a distribuição etária dos participantes. “A média de idade dos participantes era de cerca de 38 anos, e havia faixas etárias pouco representadas, como os maiores de 70”, observa. “Isso compromete a extrapolação dos dados para o envelhecimento propriamente dito.”

Outro aspecto relevante é que o estudo adotou um modelo transversal, ou seja, uma espécie “fotografia” de um único momento, sem acompanhamento ao longo do tempo. Com esse tipo de desenho, fica difícil afirmar se o cérebro está mudando e provocando o isolamento, ou se ele está apenas refletindo os efeitos prolongados do isolamento já vivido. “É o clássico dilema do ovo e da galinha”, brinca Claudia.

Além disso, é válido ressaltar que os pesquisadores não investigaram as condições clínicas ou psíquicas dos participantes. As pessoas podiam ter depressão, transtornos de ansiedade, ou mesmo estar nos estágios iniciais de quadros demenciais, como Alzheimer. Tudo isso também pode afetar a sociabilidade e a funcionalidade cerebral.

Esse aspecto, de acordo com o neurologista Cesar Castello Branco, do Departamento Científico de Neurologia Cognitiva e do Envelhecimento da Academia Brasileira de Neurologia, é importante ao considerarmos a sociabilidade como um fenômeno complexo, influenciado também por perdas simbólicas e concretas.

“Será que parte dessas pessoas que participaram do estudo está menos disponível para interações sociais por conta de filhos pequenos, carreiras exigentes ou mesmo sobrecarga emocional? Ou será que, no caso dos mais velhos, pode haver o início de um quadro demencial ainda não diagnosticado, afetando o comportamento social?”.

O que mais pode impactar a sociabilidade?

Com o envelhecimento, entram em cena outros fatores importantes: a aposentadoria, a perda do papel social ligado ao trabalho, o afastamento dos filhos, o luto por cônjuges e amigos, e por aí vai. Tudo isso pode afetar diretamente a forma como a pessoa se enxerga e se posiciona no mundo. “A perda da representatividade trabalhista é um fator significativo na queda da sociabilidade. O trabalho é um espaço de trocas, onde criamos redes de contato e exercemos uma função social”, explica Castello Branco.

Há ainda os impactos diretos das transformações físicas que acompanham o envelhecimento. Dificuldades de audição, visão e mobilidade, por exemplo, tornam interações mais cansativas ou desconfortáveis e acabam desestimulando a busca por novas conexões.

Além disso, os ambientes de socialização nem sempre estão adaptados às necessidades da população mais velha. Shoppings, bares, restaurantes e espaços públicos frequentemente têm excesso de ruídos, muitos estímulos visuais e barreiras de acessibilidade. “Os espaços coletivos precisam se reestruturar para se tornarem mais convidativos às pessoas idosas. Isso é parte da manutenção dos vínculos sociais com o envelhecimento.”

A grande armadilha, segundo a psicóloga Cecília Galetti, especialista em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia, é acreditar que a redução da sociabilidade com a idade é inevitável — como se fosse um destino biológico. “Isso favorece uma visão determinista do envelhecimento e retira a responsabilidade da sociedade, da família e das redes sociais em buscar estratégias para mudar esse cenário”, alerta. “A pessoa idosa pode querer socializar, sim. Mas com quem? Como está a disponibilidade da sociedade para interagir com ela?”.

Ter amigos é ter saúde

Apesar das lacunas e incertezas, uma coisa é certa: socializar faz bem. A ciência tem destacado cada vez mais a importância dos vínculos sociais para o bem-estar físico e emocional das pessoas. Sabe-se, por exemplo, que ter relações próximas pode reduzir os riscos associados a quadros como ansiedade e depressão, além de proteger contra demências. Redes de amizade nos deixam até mais blindados em momentos de estresse.

O alerta sobre o impacto da solidão, inclusive, chegou a ganhar status de problema de saúde pública nos Estados Unidos. Em 2023, o médico Vivek Murthy, cirurgião-geral do país, divulgou um relatório em que chamava atenção para o que classificou como uma “epidemia de solidão”. Em um trecho do documento, há a seguinte comparação: “De forma mais ampla, a falta de conexão social pode aumentar o risco de morte prematura tanto quanto fumar até 15 cigarros por dia”.

É por isso que a solidão deve ser levada a sério, especialmente quando aparece de repente. Afinal, ela pode ser um termômetro que sinaliza se algo vai bem ou não. “É importante observar o padrão social da pessoa. Como ela costumava se comportar? Era alguém que gostava de sair, de conversar, de ir ao almoço de domingo com a família? Se isso muda de uma hora pra outra, se ela começa a se isolar, vale investigar”, orienta Castello Branco.

Enquanto a ciência aprofunda as investigações, uma orientação prática já pode (e deve) ser colocada em prática: buscar companhia. Em qualquer fase da vida, mas especialmente na velhice, manter-se socialmente ativo é uma ótima estratégia para cuidar da mente e do corpo. Estar com amigos, conviver com a família ou participar de atividades em grupo — como esportes, dança, rodas de conversa ou clube de livros — contribui para o bem-estar de várias formas.

“Estudos, tanto observacionais quanto ensaios clínicos, já mostraram que intervenções chamadas ‘multidomínio’ — aquelas que combinam estímulos físicos, cognitivos e sociais — ajudam a melhorar a saúde cerebral. E, nesse pacote, a sociabilidade é um ingrediente importante”, destaca Claudia.

Fonte: Estadão