No ano passado, tive a alegria imensa de conversar longamente com Ana Beatriz Nogueira. Ana é o nome da minha mãe, que também nasceu em um dia 22 de outubro, como a atriz e produtora. Beatriz, como quem acompanha o Morte sem Tabu sabe bem, é o nome da minha filha.
Naquele dia, em que passamos muito tempo ao telefone, algo tão raro nos dias de hoje, eu falava com Ana Beatriz sobre pequenas coisas grandes como essas coincidências. E também sobre a peça Sra. Klein, que estava encerrando sua temporada em São Paulo.
Ao final, brincamos que a análise havia terminado. “Foi ótima a sessão com a Sra. Klein”.
Uma das coisas que mais me marcaram, naquela nossa primeira conversa, foi o que leva Ana Beatriz Nogueira a decidir o que produz, as peças e os shows em que investe sua energia, tempo e dinheiro. “Tem muita coisa que eu faço pelo afeto”.
Pelo afeto.
Deveria ser normal, até óbvio, gastar os ativos mais preciosos que temos por sentimento. Mas desconfio que nem tanta gente pensa assim. Ou até pensa, mas não transforma em ação.
Eu penso. E ajo. Foi nessa identificação que a admiração à distância que sentia pela atriz que acompanho desde “O Rei do Gado”, novela que me marcou quando tinha 12 anos, tornou-se uma admiração próxima, real. Um novo afeto.
No último mês, Ana Beatriz retornou aos palcos do Rio de Janeiro com “Tudo que eu queria te dizer”, adaptação teatral da obra homônima da escritora Martha Medeiros, que houvera apresentado 15 anos antes. Talvez, tecnicamente, o texto se encaixe como monólogo. Mas a atriz se transforma em tantas interlocutoras diferentes, com cargas emotivas tão próprias, que, mesmo sem ter lido o livro, sinto que estive com cada uma delas.
Foi o afeto que me fez sair de Belo Horizonte para o Rio apenas para assistir à peça. Esse “apenas” é retórico, tal como quando me perguntam se tenho “apenas” a minha filha. “Não, tenho muito ela”, costumo responder.
Levei comigo minha mãe, que tem vivido um processo de reabilitação muito difícil depois de um tombo que intensificou as sequelas dos acidentes vasculares cerebrais que teve 13 anos atrás. Eu a levei para ela perceber sua capacidade de locomoção, apesar de tudo; sua autonomia, mesmo que não ilimitada; sua possibilidade de viajar, aproveitar um hotel e conhecer um novo teatro. Eu a levei para conhecer pessoalmente alguém que nós duas admiramos e queremos bem.
Não é apenas. É muito. É imenso.
Cada carta que Ana Beatriz interpretou aumentou essa imensidão. Há momentos que fazem valer a nossa vida. Para mim, muitos deles foram vividos através da arte. Acumulei alguns no dia 30 de maio, antepenúltima apresentação do espetáculo.

Uma das cartas parecia ter sido escrita para nós. Para minha mãe e eu, que estávamos ali contra todos os lembretes diários de quanto envelhecer é difícil. Eu talvez devesse escrever que envelhecer “pode ser” difícil. Sei que muitas pessoas envelhecem bem e chegam aos 66 da minha mãe com muita disposição e autonomia. Sei que algumas correm até maratonas. Mas não vai acontecer com todo mundo. Estatisticamente, eu poderia apostar que não vai acontecer com a maioria.
Aqui da minha bolha, da minha família, dos pais dos meus amigos, dos meus amigos mais velhos, envelhecer tem sido difícil. Mas nem é por isso que não uso o “pode ser”. É porque não acho que ajuda muito. É importante que estimulemos as pessoas a fazer atividade física, controlar glicemia e colesterol, cuidar dos joelhos. Será maravilhoso que a gente tenha se cuidado para chegar aos 80 com capacidade de amarrar o tênis sozinho.
Mas, como sabemos, nada é garantido. Nem o chegar lá, muito menos o chegar lá com saúde, autonomia e mobilidade. Quem vai chegar? Quantos vão?
Recentemente, Gilberto Gil disse que o esquecimento é uma providência biológica ao deslocamento do tempo e à perspectiva da finitude. Achei genial e logo me lembrei de um dos melhores livros que conheço, chamado “Como morremos?”, do médico americano Sherwin Nuland. Nuland explica de forma bem didática como envelhecemos e como, biologicamente, envelhecer é caminhar para a morte.
É natural que a gente vá diminuindo a qualidade das nossas funções quando pensamos assim. E é frustrante quando querem nos convencer de que, se a gente fizer tudo certinho antes, chegará à velhice em plena forma.
Volto àquela carta que nos tocou tão profundamente. Aquela em que uma mulher lamenta o falecimento do marido, quando ele tinha 58 anos. Que sorte, mas que pena. Esse é o resumo da sua fala. Uma fala carregada de dor pelos lutos diários de si mesma, de tudo aquilo que ela um dia foi capaz de fazer e perceber e não é mais, nem nunca será. Muitos efeitos, sim; mas o envelhecer em si é irreversível. E isso dói.
“Acha que gosto de me repetir assim? Não faço porque quero”, diz Ana Beatriz com a alma de outra pessoa. Seguro a mão da minha mãe e me ressinto por não ter me ocorrido antes que é isso que está acontecendo. Quantas vezes eu reclamo: “mãe, você já disse isso sete vezes”. “Mas tem certeza?”, ela sempre me pergunta.
A autora da carta, Clô, diz ao marido há muito falecido tudo aquilo que ele não precisou viver por não ter envelhecido. Tudo aquilo de que ele escapou, que sorte. Mas não, ela não prefere a alternativa, ela ainda gosta de estar viva, não acha que teria sido melhor outro destino, 58 anos, que pena. A Ana de cima dos palcos se esquece de alguma coisa. Não, ela não. A Clô. Envelhecer é esquecer também.
Olho pra Ana da plateia buscando alguma confirmação de que ela concorda que mesmo o envelhecer difícil vale a pena. Seu rosto não diz nada. Mas sei que concorda. Ela me assegura isso todas as vezes que encontra nossa Beatriz.
Ao fim do espetáculo, aguardamos pela chance de um abraço na atriz. Quando minha filha quer ouvir sua música, sempre pede a música da atriz, a pintura no rosto da atriz. Ana nos abraça e nos reconhece, é carinhosa com a xará número um, pergunta pela xará número dois. Fala com carinho sobre mim para a minha mãe. Desde que virei mãe, sei o quanto vale o mundo quando alguém que admiramos se encanta por nossos filhos.
Apenas não. Imenso.

Se você nos acompanha por aqui e gosta de música, pode se interessar pela playlist “Morte sem Tabu”, no Spotify. Uma das primeiras músicas que coloquei lá se chama “Stop this train”. Ela diz sobre o medo de envelhecer, sobre o sentimento de só se sentir bom para ser jovem. E, numa frase que sempre fecha minha garganta: “não sei de que outra forma dizer isto, não quero ver meus pais irem embora”.
Por Cynthia Araújo – Doutora em Direito, autora de ‘A Vida Afinal: Conversas Difíceis Demais para se Ter em Voz Alta’