
O ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), divergiu dos posicionamentos de Alexandre de Moraes e Flávio Dino e votou para absolver o ex-presidente Jair Bolsonaro e os demais sete réus na trama golpista por organização criminosa armada e dano qualificado ao patrimônio, dois entre os cinco crimes pelos quais foram acusados pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Ao analisar a situação de cada integrante do “núcleo crucial”, Fux votou pela punição ao tenente-coronel Mauro Cid por abolição violenta do Estado Democrático de Direito, o que forma maioria na Primeira Turma para sentenciar Cid por esse crime.
Voto de Fux por réu
Mauro Cid
Condena: abolição violenta do Estado Democrático de Direito
Absolve: Tentativa de golpe de Estado, organização criminosa, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado
— As premissas teóricas teóricas que integram o meu voto impõem a conclusão de que o réu Mauro César Barbosa Cid deve ser responsabilizado criminalmente pelo crime de de abolição violenta do Estado Democrático de Direito — disse Fux.
O ministro destacou a participação de Cid em diversas etapas do plano golpista, do monitoramento de Moraes à minuta golpista, e afirmou que ele praticou atos executórios, e não meramente preparatórios.
— O colaborador sabia o que estava acontecendo e mesmo assim determinou a prática de atos capazes de violentamente criar um ambiente de ruptura institucional.
Por outro lado, o ministro afirmou que não há um vínculo do tenente-coronel com o os executores do 8 de janeiro.
Almir Garnier
Condena:
Absolve: organização criminosa
Voto sobre abolição violenta
Antes de tratar da situação de cada réu, Fux afirmou que discursos e entrevistas com ataques a membros de outros Poderes não podem configurar o crime de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito. A PGR destacou diversas falas de Bolsonaro nesse sentido como parte da estratégia golpista. O ministro considerou que o crime de tentativa de golpe de Estado foi absorvido pelo crime de abolição violenta, ou seja, só vai analisar a imputação por abolição violenta.
— Não se pode admitir que possam configurar tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito discurso ou entrevista, ainda que contenham rudes acusações aos membros de outros poderes. Muito menos podem ser criminalizadas por aplicação petições ao Judiciário contendo questionamentos ao sistema eleitoral — disse Fux.
Para o ministro, o crime de abolição violenta não abrange a punição para “turbas desordenadas despidas de organização e articulação mínimas para afetar o funcionamento dos Poderes constituídos”:
— Não se pode cogitar a incidência desse artigo pela ausência de deposição do governo legitimamente constituído.
Ele acrescentou que a legislação não prevê a punição por “bravatas”:
— Não constitui crime previsto neste neste título (abolição violenta) a manifestação crítica aos Poderes constitucionais. Afastando qualquer pretensão de punir como atentados ao Estado democrático bravatas, como foi dito aqui no interrogatório. Bravatas proferidas por agentes políticos contra membros de outros Poderes, ainda que extremamente reprováveis.
Para o ministro, acampamentos e manifestações também não podem ser criminalizados. O acampamento montado em frente ao Quartel-General do Exército é apontado pela PGR como parte da organização dos atos golpistas do 8 de janeiro.
— Não configuram crimes eventuais acampamentos, manifestações, faixas e aglomerações que consistem em manifestação política, com propósitos sociais.
Organização criminosa
Com relação ao crime de organização criminosa, Fux afirmou que a denúncia não trouxe a comprovação necessária.
— Considerando que a denúncia não indicou a presença dos elementares do crime de organização criminosa, tampouco efetivo emprego de arma de fogo, na sua atuação, é imperioso que se julgue improcedente ação penal relativamente ao crime de organização criminosa, porque esse crime não preenche a tipicidade — disse Fux.
Segundo ele, a tipificação correta seria “concurso de pessoas”. Fux argumentou que o crime de organização criminosa se caracteriza apenas se há provas de que os réus têm o objetivo de ficar associados para a prática de novos crimes, por tempo indetermindado.
— A denúncia não narrou em qualquer trecho que os réus pretendiam praticar delitos reiterados de modo estável e permanente, como exige o tipo da organização criminosa. Não houve a demonstração da prática de delito de organização criminosa.
Dano qualificado
Sobre o crime de dano qualificado, o ministro considera que não ficou comprovada a responsabilidade e autoria de cada acusado.
— O contexto de um evento multitudinário (relativo a multidões, como o caso do 8/1), embora dispense um detalhado, exagerado, exame da conduta de cada réu, ele não desobriga o órgão acusatório em estabelecer um liame (vínculo) mínimo entre cada acusado e o ato ilícito. E esse vínculo não foi demonstrado — afirmou Fux.
O ministro também afirmou que não há provas de omissão dos réus contra a depredação, e ressaltou uma mensagem do ex-ministro Anderson Torres, então secretário de Segurança Pública do Distrito Federal, dizendo para que não deixassem que os manifestantes golpistas chegassem ao STF.
— Não há prova nos autos de que os réus tenham ordenado a destruição e depois se omitido. Pelo contrário, há evidências de que, assim que a destruição começou, um dos réus tomou medidas para evitar que o edifício do Supremo fosse invadido pelos vândalos. Que eu atestei pela prova dos autos que o réu Anderson Torres assim agiu.
Debate sobre foro
Mais cedo, na análise das questões preliminares, ele se manifestou para anular o processo como um todo, com base no entendimento de que o caso não deveria tramitar na Corte por julgar réus sem a prerrogativa do foro privilegiado. O posicionamento ocorreu em relação aos pontos preliminares do julgamento, ainda sem a análise do mérito da ação.
Advogados de réus na ação penal alegam que a ação deveria tramitar na primeira instância. O STF já definiu, no entanto, que a atribuição de julgar os casos relativos ao 8 de janeiro é a Corte. Além disso, a tese definida pelo Supremo em março deste ano determina que o foro continua na Corte “ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício”. Esses são os casos do ex-presidente Jair Bolsonaro e de réus que eram ministros à época dos episódios alvos da acusação. Cabe ao STF julgar presidente, ministros e parlamentares, por exemplo.
Ao se manifestar contra a tramitação do processo no STF, Fux afirmou que a mudança no entendimento da Corte sobre o foro privilegiado “gera questionamentos sobre casuísmos”.
— Nós não estamos julgando pessoas com prerrogativa de foro. Estamos julgando pessoas que não têm prerrogativa de foro — disse Fux.
Fux alegou que a alteração na regra do foro foi feita após os fatos que estão sendo investigados na ação penal da trama golpista.
— O Supremo Tribunal Federal mudou a competência depois depois da data dos crimes aqui muito bem apontados pelo procurador geral da República. O atual entendimento é recentíssimo. A aplicação da tese mais recente para manter esta ação no Supremo, muito depois da prática de crimes, gera questionamentos não só sobre casuísmos, mais do que isso, ofende o princípio do juiz natural e e da segurança jurídica. A minha primeira preliminar anula o processo por incompetência absoluta — apontou o ministro.
Fux diz entender que a interpretação correta sobre o foro privilegiado é aquela que foi definida pelo Supremo em 2018, quando a Corte restringiu a prerrogativa apenas para casos relativos a pessoas no exercício dos cargos. O ministro ressaltou que a Corte já anulou “processo inteiro por incompetência”. Em 2021, o ministro Edson Fachin, em decisão depois referendada no plenário, anulou condenação do presidente Lula na Lava-Jato com base no entendimento que o processo não poderia ter tramitado na Justiça Federal do Paraná.
Alexandre Ramagem
Também em análise dos argumentos preliminares apresentados pelas defesas, Fux se posicionou a favor de anular o processo em relação a Ramagem no que diz respeito ao crime de organização criminosa.
Em maio, a Câmara dos Deputados determinou a paralisação do processo contra o parlamentar. Em seguida, o STF decidiu que essa suspensão só valeria para os crimes supostamente cometidos após Ramagem ser diplomado como deputado, deterioração de patrimônio e dano qualificado. A defesa pediu a extensão da suspensão também em relação ao crime de organização criminosa, posição defendida por Fux nesta quarta-feira.
“Tsunami de dados”
Em seguida, o ministro argumentou que, no caso de o julgamento ocorrer mesmo no Supremo, deveria ser no plenário, não na Primeira Turma. O regimento da Corte, no entanto, estabelece que cabe às Turmas o julgamento das ações penais.
O ministro também tratou do excesso de dados do julgamento:
— Foi exatamente nesse contexto que as defesas alegaram cerceamento de defesa, em razão dessa disponibilidade tardia, que apelidei de um tsunami de dados, que no direito anglo-saxão se denominam de document dump, e sem indicação suficiente e antecedência minimamente razoável para a prática dos atos processuais.
Delação de Cid
Fux votou para rejeitar a anulação da delação de Mauro Cid, alegando que ele sempre esteve acompanhado por advogados e que as “advertências” feitas por Alexandre de Moraes sobre os riscos de descumprimentos não foram irregulares.
— O réu colaborou com as delações sempre acompanhado de advogados. E as advertências pontuais feitas pelo relator ao colaborador, no sentido de que o descumprimento poderia ensejar sua detenção, isso faz parte do rol de perguntas que se pode fazer o colaborador.
Depois de criticar a forma como a colaboração premiada do ex-ajudante de ordens havia sido conduzida, Fux afirmou que, no caso concreto, o acordo foi válido e deve ser mantido. O ministro destacou que a homologação já havia sido feita pelo relator, Alexandre de Moraes, em 2023, e que o colaborador prestou depoimentos acompanhado de advogados, assumindo inclusive autoincriminação.
— Mudar de entendimento é manifestação de humildade judicial. O direito não é museu de princípios, está em constante mutação. Neste caso, a colaboração foi válida e deve gerar benefícios ao réu — afirmou.
“Guardar a Constituição”
Fux também afirmou que a missão da Corte é “guardar” a Constituição e afastar o juízo político da análise dos processos.
Esta ação pode condenar o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros sete réus pela acusação de participar em uma tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022. Antes de Fux, o relator Alexandre de Moraes e Flávio Dino se manifestaram pela condenação dos acusados.
— A missão do Supremo Tribunal Federal é a guarda da Constituição. Ao contrário do Legislativo e do Executivo, não compete ao STF fazer juízo político do que é bom ou ruim, conveniente ou inconveniente, apropriado ou inapropriado. Compete afirmar o que é legal ou ilegal. Exige objetividade. A Constituição vale para todos, inclusive no campo sensível da jurisdição criminal — disse Fux logo no início do julgamento.
O ministro acrescentou que o “juiz deve acompanhar a ação penal com distanciamento”:
— Não apenas por não dispor de competência investigativa ou acusatória, como também por seu necessário dever da imparcialidade. Aqui reside a maior responsabilidade da magistratura. Ter firmeza para condenar quando houver certeza e, o mais importante, ter humildade para absolver quando houver dúvida. A independência do juiz criminal tem como alicerce a racionalidade de seu mister, afastada do clamor social e político dos processos judiciais.
Mudança de posição
Nos últimos meses, Fux mudou sua posição nos julgamentos dos atos golpistas do 8 de Janeiro e passou a defender que os réus devem ser condenados apenas por tentativa de golpe de Estado, sem o acúmulo com o crime de tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito. Isso diminuiria a pena final e foi pedido por parte dos acusados da trama golpista.
O ministro também já fez ressalvas sobre a delação de Cid e deixou em aberto a possibilidade de votar para invalidar o acordo. No recebimento da denúncia, em março, Fux questionou os sucessivos depoimentos prestados por Cid, alguns com mudança de versão. Na terça-feira, voltou ao assunto:
— O senhor está me dizendo que ele foi fazer uma colaboração, a primeira oportunidade, mas depois ele não foi fazer, ele era chamado, é isso? — questionou, ao advogado Jair Alves Pereira.
A postura mais contida de Fux também ficou clara em decisões anteriores: foi o único a divergir de medidas cautelares impostas a Bolsonaro e, em caso envolvendo uma manifestante do 8 de Janeiro, defendeu pena muito inferior à fixada por Moraes, Dino e Cármen Lúcia.
Em março, quando a Primeira Turma analisava o recebimento da denúncia contra o núcleo crucial, Fux qualificou a pena da cabeleireira Débora Rodrigues dos Santos, que pichou “perdeu mané”, como exacerbada.
— Se a dosimetria é inaugurada pelo legislador, a fixação da pena é do magistrado. E o magistrado faz à luz da sua sensibilidade e do seu sentimento em relação a cada caso concreto. (…) Confesso que em alguns casos eu me deparo com uma pena exacerbada. Nós julgamos sob violenta emoção após a verificação da tragédia do 8 de janeiro. Eu fui ao meu ex-gabinete e vi mesa queimada, papeis queimados. Mas eu acho que os juízes na sua vida tem sempre que refletir dos erros e dos acertos, até porque os erros autenticam a nossa humanidade — afirmou.
Voto de Dino
Ao votar, na terça-feira, o ministro Flávio Dino classificou Bolsonaro e o ex-ministro Braga Netto como líderes da trama golpista. Ele também disse que a Constituição veda a anistia a crimes contra a democracia. O ministro ainda rebateu o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que afirmou que o ministro Alexandre de Moraes promove uma “tirania”.
— De fato, ele (Bolsonaro) e o réu Braga Netto ocupam essa posição, eles tinham de fato o domínio de todos os eventos que estão nos autos — declarou Dino.
O ministro defendeu uma pena menor para os ex-ministros e generais Paulo Sérgio Nogueira e Augusto Heleno e o deputado federal Alexandre Ramagem, ex-diretor da Abin.
— Não há a menor dúvida de que os níveis de culpabilidade são diferentes. Essa não é uma divergência, mas uma diferença em relação ao eminente relator. Em relação a Bolsonaro e Braga Netto, não há dúvida de que a culpabilidade é bastante alta. Contudo, há uma diferença com relação a Paulo Sérgio, Augusto Heleno e Alexandre Ramagem. Quando for o momento da dosimetria, eu considerarei a participação deles como de menor importância — afirmou o ministro.
Voto de Moraes
Durante seu voto, também na terça, Moraes afirmou que Bolsonaro liderou a organização criminosa que tentou um golpe de Estado após a vitória do presidente Lula na eleição de 2022.
— O réu Jair Messias Bolsonaro exerceu a função de líder da estrutura criminosa e recebeu ampla contribuição de integrantes do governo federal e das Forças Armadas, utilizando-se da estrutura do Estado brasileiro para implementação de seu projeto autoritário de poder, conforme fartamente demonstrado nos autos — disse Moraes. — Jair Messias Bolsonaro foi fundamental para reunir indivíduos de extrema confiança, do alto escalão do governo federal, que integravam o núcleo centro núcleo central da organização criminosa.
As penas máximas desses crimes chegam a 43 anos de prisão. O tamanho da punição, caso Bolsonaro seja de fato condenado, será definido após todos os ministros se manifestarem. Caberá recurso em caso de condenação.
Moraes afirmou durante o julgamento que a organização criminosa praticou “atos executórios”, entre 2021 e 2023, destinados a atentar contra a democracia. Moraes destacou que houve uma preparação “violentíssima” para uma tentativa de perpetuação no poder a “qualquer custo”. Segundo ele, as ações resultaram nos atos de 8 de janeiro, que não foram “combustão espontânea”.
— Nós estamos esquecendo aos poucos que o Brasil quase volta a um ditadura pura, que durou 20 anos, porque uma organização criminosa, constituída por grupo político, não sabe perder eleições. Porque uma organização criminosa, constituída por grupo político liderado por Jair Bolsonaro, não sabe que é princípio democrático e republicano a alternância de poder. Há excesso de provas nos autos — afirmou Moraes
Quais crimes?
O grupo responde a cinco crimes: tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado democrático de direito, organização criminosa, dano qualificado pela violência e grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado.
Também são réus os ex-ministros Braga Netto, Paulo Sérgio Nogueira, Anderson Torres e Augusto Heleno; o ex-comandante da Marinha Almir Garnier; o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência; e o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ).
O parlamentar teve o processo quanto às acusações de dano ao patrimônio e deterioração de bens tombados suspenso até o fim do mandato por decisão da Câmara, prerrogativa que a Constituição dá ao Congresso nos casos de crimes cometidos após a diplomação dos parlamentares.
Próximas sessões
Além desta quarta-feira, há sessões da Primeira Turma reservada para o julgamento da trama golpista na quinta-feira e na sexta, com previsão de encontros pela manhã e à tarde.
Fonte: O Globo





