Houve um tempo em que a vida era mais lenta. A comunicação vinha por cartas, rádio ou pela conversa na varanda. As notícias chegavam pelas mãos de vizinhos, pelos bilhetes da escola dos filhos ou pela novela das oito.
E, mesmo sem saber ler, muitos idosos conseguiam decifrar o mundo à sua maneira – no toque, na escuta, no olhar. Hoje, tudo mudou. As filas viraram senhas digitais. O aperto de mão virou clique. O bilhete virou notificação. E o silêncio de quem não sabe ler ficou ainda mais profundo.
Um grito de socorro me fez perceber isso com mais força. Recebi certa vez uma mensagem em resposta a um dos anúncios que costumo divulgar nas redes sociais sobre terapias e imersões. Era um clique em um link, que o levou até meu WhatsApp. Enviei uma saudação padrão e, logo em seguida, recebi um áudio de voz. “
Mande áudio, que eu não sei ler.” Era a voz de um senhor aposentado, analfabeto. Explicou, com simplicidade e tristeza, que não entendia muito do celular e que o maior obstáculo era não saber ler. Falamos por cerca de meia hora. Ele não se encaixava no público do anúncio, mas precisava ser ouvido.
Contou-me sobre sua solidão, sua dependência constante de terceiros para tudo o que envolvesse tecnologia. Desliguei tocada. O que são trinta minutos de escuta diante de uma vida inteira de exclusão? Aquele senhor foi mais do que um acaso digital. Ele foi o retrato de uma geração esquecida.
Uma geração que construiu casas com as próprias mãos, criou filhos sem manuais, atravessou crises econômicas, cuidou de netos – e que hoje, diante de uma tela, se vê como um estrangeiro no próprio país. Mas há algo ainda mais alarmante por trás dessa exclusão. A ciência tem demonstrado que o isolamento social, associado à falta de estímulo cognitivo, acelera o declínio das funções mentais no envelhecimento.
A neurociência já comprovou que o cérebro do idoso continua sendo plástico – ou seja, capaz de aprender, criar novas conexões e se desenvolver. No entanto, quando o idoso é excluído de atividades que desafiam sua mente, como a leitura, o aprendizado de novas tecnologias ou a interação social significativa, essa plasticidade se reduz drasticamente. Pesquisas revelam que a analfabetização digital e o isolamento afetam áreas do cérebro ligadas à memória, atenção e linguagem.
O resultado é o agravamento de quadros como a depressão, a apatia e o risco aumentado de demência. Em outras palavras: a exclusão digital não é apenas uma barreira social – é um fator que compromete diretamente a saúde mental e neurológica do idoso.
A alfabetização de idosos, ainda vista por muitos como um gesto simbólico, precisa ser tratada como um ato de justiça e de promoção da saúde cognitiva. Aprender a ler com 70, 80 ou 90 anos não é luxo – é recomeço. É reaver a autonomia, é escrever o próprio nome no banco, é entender uma receita médica, é poder digitar “bom dia” para os filhos no grupo da família. É, acima de tudo, poder escolher e continuar exercendo o próprio pensamento.
Mas essa missão não pode recair apenas sobre o governo. Vamos precisar de todo mundo. É aqui que entra o terceiro setor – com suas ONGs, projetos sociais, centros comunitários, igrejas, associações. Essas entidades conhecem os rostos por trás das estatísticas. Sabem onde mora a solidão. Sabem como acolher com empatia, ensinar com paciência e incluir com dignidade. Esses projetos podem ser faróis na vida de quem, por muito tempo, caminhou no escuro.
Podem levar não só o alfabeto, mas também o mundo digital de forma descomplicada e acolhedora. Um botão por vez. Uma mensagem por dia. Uma conquista de cada vez. E, ao lado dessas iniciativas, o poder público deve cumprir o seu papel: investir, apoiar, formar educadores, garantir políticas permanentes. Porque, enquanto houver um idoso excluído, haverá algo faltando em nossa ideia de civilização.
Incluir o idoso analfabeto no mundo digital não é só um avanço tecnológico. É uma estratégia de cuidado com o cérebro e com o coração. É um resgate histórico. É olhar para trás e dizer: “Nós não esquecemos de vocês”. É retribuir, com ações, tudo o que essas pessoas fizeram – silenciosamente – para que hoje estivéssemos aqui.
Eles não precisam de muito. Precisam de tempo, escuta e oportunidade. Precisam de alguém que diga: “Você importa. Ainda dá tempo.” E precisam de todos nós. Porque, no final das contas, o mundo que queremos construir para o futuro se mede pela forma como cuidamos de quem veio antes de nós. Vamos precisar de todo mundo.
