O fenômeno do superendividamento tem ganhado proporções alarmantes no Brasil, afetando diretamente a dignidade da pessoa humana e a função social do crédito. Com a promulgação da Lei nº 14.181/2021, que alterou o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso, criou-se um importante marco legal de proteção ao consumidor superendividado. Entretanto, permanece um dos maiores obstáculos à efetividade dessa legislação: a prova do chamado “mínimo existencial”.
O que é o mínimo existencial?
O mínimo existencial refere-se ao conjunto de recursos indispensáveis à preservação de uma vida digna, nos termos do art. 1º, III, da Constituição Federal. Inclui despesas básicas com moradia, alimentação, saúde, educação, transporte, higiene, entre outros.
No contexto do superendividamento, a legislação prevê que o plano de pagamento do devedor não pode comprometer esse mínimo. O art. 104-A, §1º, do CDC reforça que qualquer renegociação deverá resguardar esses recursos essenciais.
O desafio probatório
Embora o conceito de mínimo existencial esteja amparado na dignidade da pessoa humana, sua comprovação objetiva nos autos de processos judiciais ou administrativos continua sendo um entrave prático.
Não há um valor fixado por lei que defina, em termos numéricos, o que é mínimo existencial. Tribunais têm adotado parâmetros variados, como o salário mínimo ou parte dele, mas não há uniformidade. A jurisprudência oscila entre considerar 25% a 70% da renda do consumidor como faixa de proteção mínima, o que acarreta insegurança jurídica.
Além disso, cabe ao consumidor, muitas vezes hipossuficiente, a incumbência de provar suas despesas essenciais, o que exige organização de documentos como comprovantes de aluguel, contas de luz, alimentação, saúde, entre outros.
A inconstitucionalidade da limitação normativa do mínimo existencial
Com a promulgação do Decreto nº 11.150/2022, o Poder Executivo tentou regulamentar o conceito de “mínimo existencial”, fixando-o inicialmente em 25% do salário mínimo nacional, como parâmetro para garantir o valor protegido ao consumidor durante a concessão e renegociação de crédito. No entanto, esse valor foi amplamente criticado por especialistas e órgãos institucionais.
A Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) classificou o valor como um verdadeiro “escárnio”, destacando que tal quantia não seria minimamente suficiente para assegurar a sobrevivência digna do consumidor superendividado e de sua família. O Ministério Público também se manifestou criticamente. O escritório Mattos Filho destacou que a tentativa de padronizar a dignidade por decreto viola princípios constitucionais e contraria o microssistema de proteção ao superendividado.
Reconhecendo a inadequação da regra anterior, foi editado o Decreto nº 11.567/2023, que alterou o valor do mínimo existencial para R$ 600,00, conforme noticiado pelo STF. No entanto, o novo valor permanece insuficiente, pois ignora as realidades diversas das famílias brasileiras.
A restrição da regulamentação dos decretos deve ser limitada à concessão do crédito, como forma de proteger o fornecedor de sanções legais previstas no art. 54-D, parágrafo único, do CDC. No entanto, não pode ser utilizada para caracterizar o superendividamento ou para fixar valores no plano de pagamento (artigos 104-A a 104-C do CDC).
Análise jurisprudencial e doutrinária: Enunciado nº 40 do Fonamec
O Enunciado nº 40 do Fonamec consagra a necessidade de análise concreta da realidade do consumidor:
“Na pactuação do plano de pagamento das dívidas do consumidor superendividado deverá ser respeitado o mínimo existencial, considerando a situação concreta vivenciada pelo consumidor e sua entidade familiar, de modo a não comprometer a satisfação de suas necessidades básicas, observados os parâmetros estabelecidos no artigo 7º, inciso IV, da Constituição da República.”
A justificativa do enunciado reforça que a imposição de um valor fixo ignora a diversidade das realidades familiares e contraria o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República. A aplicação dos decretos, quando contrariar esse princípio, deve ser afastada por meio do controle difuso de constitucionalidade.
Conclusão
A proteção ao consumidor superendividado não pode se limitar ao plano normativo. É preciso garantir mecanismos eficazes de tutela, e entre eles, o reconhecimento e a preservação do mínimo existencial. Superar o desafio probatório é, portanto, condição essencial para dar concretude à dignidade da pessoa humana, valor fundante da República e norte do ordenamento jurídico brasileiro.
