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Opinião – Judicialização da saúde, ‘fenômeno’ brasileiro

Há mais de duas décadas os sistemas público e privado de saúde vêm enfrentando o fenômeno da “judicialização em saúde”, que cresce exponencialmente em valores e exige constantes ajustes de rota por parte dos gestores.

Em 2003, a judicialização envolvia artigos como papel higiênico e a entrega de itens comprados em feira; depois, vieram até fraldas e protetores solares. Nada relativo a terapias medicamentosas.

Houve casos em que a judicialização foi benéfica. Existiram grandes demandas judiciais que beneficiaram populações com moléstias então negligenciadas pelo poder público, tais como HIV, hepatite C, doenças raras e oncológicas, entre outras.

De outra sorte, e lamentavelmente, uma parte da indústria farmacêutica promoveu ensaios clínicos de novos produtos por meio da judicialização. Em vez de custear o tratamento com recursos próprios, algumas farmacêuticas apresentavam os resultados clínicos com a base de dados dos pacientes que recebiam medicamentos por meio de ações judiciais. Um descalabro, às custas do erário.

Não para por aí. Existia, e agora está regulamentada, a prescrição de medicamentos para uma doença não descrita na bula daquele fármaco – chamada de prescrição off label. A indústria proprietária da patente do medicamento não confirma a indicação, não fez estudos rigorosos que garantam seu resultado, mas os médicos já receitam e o Judiciário determina a entrega. É outro absurdo.

É de se considerar, no entanto, que, em muitos casos, a procura pelo Judiciário para recepção de medicamentos é justa e se deve ao fato do desabastecimento dos itens nas farmácias públicas. O paciente não tem como esperar.

Também é preciso destacar que a classe médica, de forma abrangente, não se informa sobre quais são os tratamentos possíveis para os diferentes planos de saúde e para o Sistema Único de Saúde (SUS).

A nossa legislação em saúde tem muitas “vírgulas”. Também é esparsa, com a edição de diversas portarias regularmente modificadas ao longo dos anos, o que torna as normativas bastante difíceis de serem acompanhadas.

Entre 2013 e 2018, na Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo (SES-SP), trabalhamos no combate à judicialização, atuando incansavelmente para minimizar os danos aos pacientes e aos cofres públicos.

Nos aproximamos do Poder Judiciário, Defensoria Pública, Tribunal de Justiça e Conselho Nacional de Justiça, com o inestimável apoio da Procuradoria-Geral do Estado.

À época existiam em torno de 53 mil demandas ativas, envolvendo solicitação de medicamentos, insumos e correlatos, e de procedimentos, como exames, consultas e cirurgias. No comando da área de judicialização, reduzimos em 25% o número de processos contra a pasta da Saúde no período de 2016 a 2018, com uma queda de 30% (economia de R$ 300 milhões) nos valores despendidos pelo Tesouro do Estado no custeio dessas demandas.

O sucesso veio do grupo de trabalho criado pelo Tribunal de Justiça com vistas à demonstração ao Judiciário dos danos da judicialização, e o oferecimento pela SES-SP da solução administrativa de conflitos.

No SUS, a responsabilidade pela inclusão de medicamentos é da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), do Ministério da Saúde. A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), responsável pela regulação dos planos privados de saúde, usa as mesmas bases da Conitec.

Esses processos, no entanto, não são rápidos o suficiente para alcançar o desenvolvimento da indústria da medicina – até mesmo porque a criação de novas tecnologias precisa de testes, resultados, protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas que muitas vezes são apresentados após o lançamento do novo produto, com base em aprovações feitas no exterior e sem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Os gastos no Estado de São Paulo ainda giram em torno de R$ 900 milhões ao ano com o atendimento das demandas judiciais.

O “caos judicial” no sistema privado de saúde entrará nas mesmas fases já percorridas pelo poder público: observação, registro, tomada de decisão em conjunto com o Judiciário.

A saúde suplementar cada vez mais vêm apresentando aos pacientes contas altas quando da sua saída de alguns hospitais, com a alegação de que o tratamento não era coberto pelo plano. Ocorre que o paciente, ou mesmo o responsável por ele, não teve, na maior parte dos casos, acesso a essa informação.

Nem sempre os menos favorecidos conseguem alcançar o Judiciário, o que traz ainda mais desigualdade no fornecimento de saúde para todos. Os pacientes e seus familiares são o elo fraco da relação.

A medicina vem propiciando que vivamos mais tempo, mas nem o sistema público nem o privado estão preparados para isso. É preciso mais investimentos.

Dificilmente aquele que deixou acontecer a “catástrofe” terá condições de lidar com seus efeitos. A história é recente, mas basta estudar os caminhos já percorridos, ver o que funciona e o que não funciona, para não levarmos o sistema de saúde à falência.

Por David Uip e Renata Santos

 

David Uip- Médico infectologista, reitor do Centro Universitário FMABC, diretor nacional de Infectologia da Rede D’Or, foi secretário de Estado da Saúde de São Paulo (2013-2018)

Renata Santos – Advogada especializada na área de Direito em Saúde, foi assessora de Gabinete da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo.