Pular para o conteúdo

O silêncio que adoece

Superendividamento e sofrimento psíquico das mulheres invisíveis

Nas margens da estatística e do debate público, existe uma multidão de mulheres sustentando o país com o próprio corpo, tempo e saúde mental. Mães solo, cuidadoras de pais idosos, avós que assumem netos abandonados. São elas que, com pouca ou nenhuma rede de apoio, mantêm seus lares emocional e financeiramente — mas seguem invisíveis aos olhos das instituições.

O cuidado, para essas mulheres, não é escolha: é dever. E esse dever, quando encontra a negligência do Estado e a desigualdade estrutural de gênero, se transforma em sobrecarga. O resultado é alarmante, mas ainda pouco reconhecido: o superendividamento, que começa como um esforço para garantir o básico, termina como um processo de adoecimento físico, emocional e social.

Quando o afeto vira dívida

Ao cuidarem dos seus — filhos, pais, netos — essas mulheres frequentemente precisam recorrer ao crédito para garantir necessidades essenciais. O problema é que esse crédito, em muitos casos, é ofertado de forma abusiva. Empréstimos consignados, cartões de crédito com juros exorbitantes e refinanciamentos sucessivos entram na vida dessas mulheres sem qualquer análise real da capacidade de pagamento.

Não se trata apenas de uma falha de mercado. É uma violação direta aos princípios da boa-fé e da transparência previstos no Código de Defesa do Consumidor. E mais: é uma prática que se aproveita de um estereótipo socialmente construído — o da mulher cuidadora que tudo suporta.

 A dissertação de Isabelle Rodrigues (2022) lança luz sobre esse ponto ao demonstrar como a publicidade direcionada reforça a ideia de que a mulher deve abrir mão de si mesma pelo bem dos outros. A dívida, assim, não nasce apenas da necessidade, mas também da culpa. E a culpa, como sabemos, adoece.

O preço emocional da hipervulnerabilidade

A legislação brasileira já reconhece o conceito de hipervulnerabilidade no direito do consumidor. No entanto, quando falamos de mulheres em situação de endividamento, é preciso ir além da norma e enxergar a realidade concreta: são pessoas que não apenas têm menos acesso à informação e ao poder econômico, mas que vivem marcadas por camadas de exclusão — de gênero, de raça, de classe e de idade.

Na prática da advocacia, ouço com frequência histórias de mulheres que não conseguem dormir, que se sentem fracassadas, que escondem boletos para não preocupar os filhos. A pesquisa de Hennigen e Borges (2014) confirma esse cotidiano: ansiedade, insônia, depressão, vergonha. É o sofrimento que não aparece nos extratos bancários, mas que destrói por dentro.

O superendividamento, nesse contexto, não pode ser analisado apenas por indicadores financeiros. Ele precisa ser tratado como questão de saúde pública, de proteção social e de justiça de gênero.

O silêncio institucional

Embora a Lei nº 14.181/2021 tenha representado um avanço importante no combate ao superendividamento, sua aplicação ainda é tímida diante das complexidades enfrentadas por mulheres que cuidam sozinhas de suas famílias. Falta integração entre políticas públicas. Falta uma escuta qualificada. Falta reconhecer que a dívida dessas mulheres não é fruto de irresponsabilidade, mas de abandono estrutural.

 Enquanto isso, elas continuam sendo julgadas por não conseguirem “controlar seus gastos”. Continuam enfrentando barreiras para renegociar dívidas, acessar justiça gratuita ou receber apoio psicológico. Continuam sendo tratadas como inadimplentes — quando, na verdade, são sobreviventes de um sistema que exige tudo e oferece quase nada.

Um novo olhar para a justiça

É urgente repensar a abordagem jurídica sobre o superendividamento. Não basta ensinar educação financeira como se o problema fosse individual. É preciso responsabilizar o mercado, cobrar atuação efetiva do Estado e construir uma justiça que enxergue essas mulheres como sujeitos de direitos específicos.

O que está em jogo não é só a restrição de crédito ou a negativação do nome. É a dignidade. É o direito de viver com leveza, sem o peso de dívidas que não são suas por escolha, mas por necessidade.

O presente artigo consiste em um ponto de partida. Em breve, convido o leitor a conhecer o capítulo integral do livro “I Livro de Direito Bancário da ABA”, onde tais reflexões são aprofundadas mediante dados, experiências e propostas concretas, visando romper com o ciclo de adoecimento e exclusão.

Por Sandra Maria Barbosa de Oliveira, advogada e professora