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O Senado não fez mais que a obrigação

A Câmara dos Deputados escreveu uma das páginas mais vergonhosas da história republicana ao aprovar a chamada “PEC da Blindagem” – ou da “Impunidade”, ou da “Bandidagem”, como queiram. Com ela, os deputados, a título de defender prerrogativas parlamentares, assinaram um pacto de autoproteção criminosa. Ontem, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado rejeitou in totum, por 26 votos a 0, a aberração. Fez bem – mas não fez mais do que a obrigação.

A proposta exumava, em versão ainda mais obscena, o sistema de licença prévia do Congresso para processar parlamentares, mecanismo que vigorou entre 1988 e 2001 e que resultou em quase 300 pedidos de investigação barrados – contra apenas um autorizado. A impunidade de Hildebrando Pascoal, o “deputado da motosserra”, acusado de comandar homicídios brutais e de envolvimento com o narcotráfico, é o emblema desse período de vergonha. Foi justamente para pôr fim a essa era de impunidade que se aprovou a Emenda Constitucional n.º 35/2001. A Câmara, duas décadas depois, quis ressuscitar o cadáver político da licença prévia, pervertendo não só os mais elementares princípios republicanos, mas também o simples bom senso.

Não parava aí. A PEC previa que as decisões sobre prisão em flagrante e formação da culpa fossem tomadas em votação secreta pelo plenário – devolvendo ao submundo o que a Emenda Constitucional n.º 76/2013 havia trazido à luz da transparência. Estendia foro privilegiado a presidentes de partidos, cargo sem função estatal. E hipertrofiava a inviolabilidade parlamentar, tornando-a salvo-conduto absoluto contra qualquer responsabilização. Imunidade pervertida em impunidade, prerrogativa degenerada em privilégio.

Alguns deputados tentaram traficar a falácia de que se tratava de resgatar o “texto original” da Constituição. É um sofisma pernicioso. O dispositivo da licença prévia foi concebido em um contexto de transição democrática, para resguardar os mandatos depois de duas décadas de cassações arbitrárias promovidas pelo regime militar. Hoje, num regime democrático consolidado, o artifício não protege a democracia, mas os corruptos; não defende a liberdade de representação, mas facilita a infiltração do crime organizado no Parlamento. A pretexto de restaurar uma letra morta, a Câmara seviciou o espírito da Constituição.

A indecência foi aprovada com articulação consciente do Centrão e a cumplicidade covarde do presidente da Casa, Hugo Motta. Não houve engano, não houve distração: houve dolo legislativo. O súbito surto de “arrependimento” de alguns deputados, após a reação das ruas e das redes sociais, é oportunismo puro. “Ninguém votou sem saber”, como lembrou o senador Otto Alencar. As desculpas posteriores, de petistas a bolsonaristas, foram apenas exercícios performáticos de marketing de danos.

Coube à sociedade o papel de verdadeiro freio. O recado das multidões nas ruas foi contundente: os brasileiros não toleram um Congresso acima da lei. O Senado, sensível ao custo político das eleições majoritárias e pressionado pela opinião pública, agiu como barreira. Seja pela virtude de alguns ou por instinto de sobrevivência de todos, os senadores rasuraram uma das páginas mais vergonhosas da história do Congresso. Mas não há como apagá-la.

Que ela sirva de lição. A “PEC da Blindagem” não foi acidente, mas sintoma de um padrão corrosivo: o corporativismo voraz que converte o Legislativo em condomínio de interesses privados, blindado contra a Justiça e a sociedade. Esse mesmo espírito explica o uso predatório das emendas orçamentárias, a conivência com “devedores contumazes” ou vendetas contra o Banco Central. É a lógica de um poder capturado, divorciado da nação que deveria representar.

Arquivar a PEC foi o primeiro passo. O segundo é cobrar responsabilidades de quem a patrocinou e blindar – agora sim, de forma legítima – a Constituição contra novos truques regimentais que disfarçam privilégios como “prerrogativas”. A sociedade mostrou que não está anestesiada. A democracia só se sustenta quando a lei vale para todos. E igualdade perante a lei não se negocia.

Por Por Notas & Informações – Estadão