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Mercado prateado e vulnerabilidade digital do consumidor idoso: desafios para os Procons

A transição demográfica em curso no Brasil impõe novos desafios à atuação dos Procons. Segundo dados recentes do IBGE , de 2000 a 2023, a proporção de idosos na população brasileira quase duplicou, subindo de 8,7% para 15,6%. A sociedade brasileira está, inequivocamente, se tornando mais madura. A estimativa para 2070 é ainda mais expressiva: cerca de 37,8% da população nacional será composta por pessoas com 60 anos ou mais, totalizando 75,3 milhões de indivíduos. O envelhecimento populacional, além de reconfigurar a estrutura social, altera profundamente o panorama econômico e regulatório do país.

Inclusive, nas últimas décadas , o chamado mercado prateado (silver economy) ganhou destaque, e se refere ao conjunto de atividades, produtos e serviços voltados às demandas específicas do público idoso, que na qualidade de consumidor é importante agente econômico. O termo “prateado” é uma alusão à cor dos cabelos grisalhos. Esta economia emergente abrange setores como tecnologia assistiva e digital, cuidados em saúde, turismo acessível, mobilidade urbana adaptada, serviços financeiros personalizados, entre outros.

No Brasil, idosos mantém o papel de provedores de suas famílias, e apresentam alto potencial de consumo digital de bens e serviços, injetando milhões de reais na economia anualmente. Sem dúvida, o consumidor do mercado prateado apresenta uma força econômica que não pode ser negligenciada pela sociedade e pelos formuladores e executores de políticas públicas consumeristas.

A Era Digital e os impactos para os consumidores idosos

 O número de idosos com acesso à internet no Brasil cresceu 278% entre 2016 e 2024, saltando de 6,5 milhões para 24,5 milhões, segundo o IBGE (PNAD Contínua) . Hoje, 69,8% da população idosa está conectada, e destes, 87,9% navegam diariamente. Esse avanço reflete não apenas a digitalização compulsória dos serviços, mas também a integração da internet à rotina destes consumidores.

A transformação digital nos serviços bancários ilustra bem esse cenário: idosos acostumados ao atendimento presencial passaram a utilizar aplicativos para realizar operações como Pix, desbloqueios de serviços, e contratações eletrônicas. Apesar dos desafios, a digitalização também trouxe ganhos: durante e após a pandemia de Covid-19, idosos recorreram às redes sociais e videochamadas para manter vínculos afetivos; aplicativos de entrega facilitaram o consumo de bens essenciais; a telemedicina ampliou o acesso à saúde; e o ensino a distância fortaleceu a aprendizagem contínua.

A inclusão digital da pessoa idosa exige políticas públicas e ações estruturadas de suporte e regulação, capazes de responder ao agravamento de sua vulnerabilidade. Tal fragilidade se acentua diante da rápida evolução tecnológica, das interfaces digitais complexas, e da predominância de linguagem técnica pouco acessível. A ausência ou o baixo nível de letramento digital compromete diretamente a autonomia da vontade, tornando essa população hipervulnerável a fraudes, manipulações e práticas abusivas. Nessas condições, o consentimento obtido por meio de simples cliques ou por reconhecimento facial, sem a devida oferta de informações claras, acessíveis e compreensíveis, pode deixar de representar uma manifestação de vontade genuína. A assimetria informacional se agrava ainda mais com o uso de dark patterns , design hostil, contratos digitais longos e obscuros, e estratégias de publicidade direcionada, que limitam a autodeterminação do consumidor idoso e aumentam sua exposição a escolhas prejudiciais.

Segundo pesquisa do Procon-SP (2024) , 51,15% dos idosos relataram dificuldades em contratações digitais, especialmente no setor financeiro, e 63,76% dos que compraram online enfrentaram problemas como não entrega ou fraude. O reconhecimento dessa hipervulnerabilidade impõe ao Estado e aos fornecedores o dever de adotar práticas inclusivas e protetivas, conforme determinam a Constituição, o Código de Defesa do Consumidor , o Estatuto da Pessoa Idosa , e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. A defesa do consumidor idoso no meio digital deve ser prioridade estratégica do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.

O papel dos Procons no sistema de proteção do consumidor idoso

A trajetória institucional dos Procons no Brasil evidencia sua capacidade de adaptação frente às transformações sociais, econômicas e tecnológicas ocorridas nas últimas décadas. De sua origem como entidades voltadas principalmente à conciliação de conflitos individuais e à fiscalização de práticas abusivas, os Procons expandiram significativamente sua atuação. Atualmente, realizam ações estruturadas de educação para o consumo, proteção coletiva e monitoramento de setores estratégicos do mercado, consolidando-se como pilares do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. E em contextos de restrições orçamentárias e de servidores e colaboradores.

Essa evolução institucional contribui diretamente com a materialização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU [12], em especial com o ODS 16 que propõe o fortalecimento de instituições eficazes, responsáveis e inclusivas. Ao promover soluções céleres, gratuitas e menos formalistas para conflitos de consumo, os Procons colaboram para a desjudicialização e ampliam o acesso à justiça, especialmente em favor de consumidores hipervulneráveis, como os idosos.

A descentralização e capilaridade dos Procons conferem-lhes amplo potencial de impacto na vida cotidiana da população. No entanto, o processo de envelhecimento demográfico impõe novos desafios estruturais e operacionais, que demandam investimentos direcionados à garantia da proteção efetiva dos consumidores idosos tanto nos ambientes físicos quanto digitais. Nesse contexto, a formulação e a execução de políticas públicas e ações eficazes exigem a existência de dados confiáveis, integrados e sistematizados.

Contudo, a realidade atual revela uma fragmentação informacional significativa. Muitos Procons estaduais e municipais operam com plataformas distintas de registro de reclamações e denúncias, adotando formulários com campos variáveis e protocolos não padronizados. Essa heterogeneidade compromete a consolidação de uma base nacional de dados robusta, dificultando o diagnóstico de práticas ilegais recorrentes aos idosos, e o monitoramento integrado de setores críticos.

E, apesar dos esforços da Senacon em promover nacionalmente o sistema Proconsumidor, sua adesão é voluntária, o que perpetua a dispersão dos dados e compromete a governança pública sobre o consumo digital. A baixa interoperabilidade entre os sistemas enfraquece a formulação de políticas baseadas em evidências para a defesa do consumidor idoso.

Diante desse cenário, torna-se imprescindível uma abordagem mais proativa, preventiva e sistêmica. A adoção de modelos de gestão orientados por dados (data-driven), em conformidade com a LGPD, é uma estratégia promissora. Por meio da coleta, tratamento e análise inteligente de informações, os Procons podem antecipar riscos, identificar padrões de comportamento nocivo, otimizar a alocação de recursos e aprimorar tanto a fiscalização quanto a mediação de conflitos. A construção de uma rede nacional de dados qualificados, anonimizados e interoperáveis entre Procons e Senacon representa um passo decisivo para adoção de medidas apoiadas em evidências concretas que auxiliem o idoso no mercado prateado.

Nesse processo, a digitalização dos Procons deve ser compreendida como mais que mera modernização tecnológica. Trata-se de uma oportunidade de redesenhar fluxos institucionais, eliminar burocracias e ampliar o acesso dos consumidores idosos aos mecanismos de defesa de seus direitos. A migração progressiva para plataformas digitais ágeis, seguras e acessíveis é fundamental para a criação de um ecossistema de proteção mais eficiente, responsivo e inclusivo. Para tanto, os sistemas digitais devem adotar princípios de usabilidade universal. Interfaces intuitivas, linguagem simples, fontes legíveis e funcionalidades adaptadas são requisitos essenciais para maior efetividade na proteção do consumidor idoso.

Paralelamente, é necessário estimular, no âmbito dos Procons, a realização de pesquisas e estudos sobre o mercado digital e suas implicações para esse público. O monitoramento regular de vulnerabilidades, associado à avaliação sistemática das medidas implementadas, é condição indispensável para a construção de respostas públicas mais eficazes.

Além sentido, a educação do idoso para o consumo digital deve ser compreendida como uma política pública permanente, planejada e articulada, e não como uma ação pontual ou episódica. É fundamental que as estratégias educativas envolvam dimensões integradas de literacia digital, financeira comportamental e jurídica, considerando as especificidades de aprendizagem da população idosa. Por exemplo, é essencial a elaboração pelos Procons de um calendário anual de ações educativas, aliado à produção de materiais multimídia acessíveis como vídeos, cartilhas, podcasts e conteúdos interativos com linguagem clara, e metodologias pedagógicas adequadas ao público-alvo, garantindo não apenas a compreensão, mas também a efetiva apropriação dos direitos pelos consumidores idosos.

Considerações finais

Os Procons ocupam posição estratégica na tutela dos direitos dos consumidores idosos, especialmente diante das rápidas transformações do mercado digital. Sua atuação requer reestruturação orientada por dados e centrada na proteção dos hipervulneráveis. A fragmentação informacional e os desafios impostos pelo envelhecimento populacional demandam políticas públicas e ações integradas, com digitalização inclusiva, fortalecimento institucional e produção sistemática de evidências. A promoção de educação permanente para o consumo, adaptada às especificidades da população idosa, deve ser incorporada como diretriz estratégica, de forma articulada e contínua, visando assegurar efetividade e acessibilidade nas relações de consumo contemporâneas.

Para isso, é necessária uma articulação sistemática entre todos os Procons, Senacon, Ministério Público, Defensorias Públicas, agências reguladoras e instituições acadêmicas, construindo um ecossistema que reconheça o consumidor idoso como sujeito de direitos em contínua interação com a tecnologia.

É essencial abandonar a visão estereotipada do idoso como agente passivo ou alheio à modernidade. O consumidor idoso integra ativamente a chamada silver economy, exercendo seu protagonismo na vida econômica e digital. Nesse contexto, sua plena inclusão na sociedade digital deve ser reconhecida como um direito, demandando políticas públicas fundamentadas em evidências que considerem suas vivências, capacidades e contribuições, promovendo sua autonomia e participação informada no mercado de consumo.

Por Flávia Lira da Silva – via Consultor Jurídico

Flávia Lira da Silva é advogada, coordenadora de estudos e pesquisas no Procon-RJ, professora na Escola Estadual de Defesa do Consumidor (Edcon-RJ), conselheira do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, associada ao Brasilcon, e integrante da CDC OAB-RJ.