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Litigância predatória é exceção, não regra

O tema da chamada ‘litigância predatória’ tem ganhado destaque nos debates jurídicos no Brasil, especialmente no contexto da advocacia de massa.

Antes de adentrarmos o mérito da questão, é fundamental compreendermos dois conceitos. O primeiro é o da própria ‘litigância predatória’, que, resumidamente: consiste em prática abusiva de ajuizamento em massa de ações judiciais padronizadas e repetitivas, muitas vezes sem individualização dos casos ou consentimento real das partes, com o objetivo de sobrecarregar o Judiciário e obter vantagens indevidas.

Tal conduta deve ser enfrentada por todos, pois compromete a eficiência do sistema judicial, prejudica a tramitação de processos legítimos e representa um desafio para o acesso à Justiça, especialmente quando direcionada contra grandes empresas ou instituições.

O segundo é o da “falácia ad hominem”. Trata-se de um conceito argumentativo que, em vez de atacar o conteúdo do argumento, ataca a pessoa que o profere, desviando o foco da questão principal e invalidando o debate de forma ilegítima.

Prosseguindo, no cenário jurídico atual, quando confrontados com o volume expressivo de processos contra os maiores litigantes do país, surge um questionamento crucial: “é mais fácil colocar em dúvida a atuação da classe de advogados por processos predatórios praticados por uma minoria ou enfrentar um problema estrutural para garantir a observância dos direitos do consumidor e do cidadão?”

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 133, estabelece que “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. Este dispositivo constitucional reconhece a essencialidade da advocacia para o funcionamento do Estado Democrático de Direito, conferindo-lhe status de função essencial à Justiça.

O advogado, ao postular em juízo, defende não apenas interesses individuais, mas também atua como guardião do ordenamento jurídico e promotor do acesso à justiça, garantia fundamental prevista no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

Como em qualquer profissão, existem indivíduos que se desviam dos padrões éticos, entretanto, essa constatação não autoriza a generalização que estigmatiza toda uma classe profissional. O problema reside na conduta individual e não na advocacia como instituição. Litigância Predatória é exceção, não regra.

A advocacia de massa, por sua vez, representa uma resposta à massificação das relações jurídicas na sociedade contemporânea. Quando exercida com ética e responsabilidade, cumpre função social relevante ao viabilizar o acesso à justiça para cidadãos que, individualmente, teriam dificuldades em fazer valer seus direitos.

O ordenamento jurídico brasileiro já dispõe de mecanismos eficientes para coibir práticas abusivas no processo. O Código de Processo Civil, em seus artigos 79 a 81, regula expressamente a litigância de má-fé, estabelecendo sanções pecuniárias e processuais para quem, por exemplo: 1. Deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; 2. Alterar a verdade dos fatos; 3. Proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo.

Além disso, o Estatuto da Advocacia (Lei nº 8.906/94) e o Código de Ética e Disciplina da OAB estabelecem rigoroso sistema de controle da conduta profissional, prevendo desde advertências até a exclusão dos quadros da Ordem para infrações graves.

O movimento para combater práticas predatórias no âmbito processual é legítimo, necessário e deve envolver todo o sistema de justiça. Contudo, as medidas adotadas não podem representar obstáculos ao acesso à justiça, especialmente para a população economicamente vulnerável.

A criação de entraves processuais genéricos, sob o motivo de combater a litigância predatória, pode gerar o efeito indesejável de dificultar o acesso ao Judiciário justamente por aqueles que mais necessitam da proteção estatal. Em outras palavras, o remédio não pode ser mais nocivo que a doença.

É necessário distinguir o joio do trigo, enquanto práticas abusivas devem ser rigorosamente punidas, o legítimo exercício do direito de ação não pode sofrer limitações que comprometam a efetividade da tutela jurisdicional.

O enfrentamento da litigância predatória demanda abordagem equilibrada, que não comprometa garantias fundamentais nem estigmatize toda uma classe profissional. A solução passa pela aplicação efetiva dos mecanismos já existentes no ordenamento jurídico, como a imposição de multas por litigância de má-fé e a responsabilização ética-disciplinar perante a OAB.

Paralelamente, é imprescindível enfrentar as causas estruturais que fomentam o excesso de litigiosidade, como a resistência sistemática dos demandados ao cumprimento espontâneo de obrigações legais e contratuais. O foco em medidas preventivas pode contribuir significativamente para a redução da judicialização.

Concluindo. É fundamental reafirmar que a advocacia, como função essencial à Justiça, desempenha papel crucial no Estado Democrático de Direito. As eventuais distorções no exercício profissional não podem servir de pretexto para comprometer a independência da classe ou para restringir o acesso à justiça, sob pena de enfraquecer as próprias bases do sistema jurídico brasileiro.

Por Manoel Guilherme F. de Menezes – Advogado, membro da Comissão de Direito Bancário da Associação Brasileira de Advogados – ABA