Resumo
O presente artigo analisa criticamente a Lei nº 15.252/2025, que dispõe sobre os direitos da pessoa natural usuária de serviços financeiros. Embora a norma pareça reforçar a autonomia e a transparência nas relações bancárias, ao oferecer benefícios como portabilidade salarial e crédito com juros reduzidos, ela oculta mecanismos que transferem o ônus da proteção jurídica para o consumidor.
O artigo demonstra como a lei, ao condicionar taxas menores à renúncia de direitos patrimoniais e processuais, cria um desequilíbrio em favor dos credores, violando princípios fundamentais do Código de Defesa do Consumidor, especialmente os da vulnerabilidade e da harmonia nas relações de consumo (art. 4º, I e III).
Em suma, a lei opera como uma verdadeira “cortina de fumaça”, apresentando direitos de fachada e impondo deveres de renúncia, que enfraquecem a posição jurídica do consumidor em caso de inadimplência.
1. Introdução: O Paradoxo da Nova Lei
Sancionada em 4 de novembro de 2025, a Lei nº 15.252/2025 foi anunciada como um avanço na política de proteção financeira da pessoa natural. Entre seus dispositivos, destacam-se:
- A portabilidade salarial automática,
- O débito automático entre instituições financeiras,
- O direito à informação sobre operações de crédito, e
- A criação da modalidade de crédito com juros reduzidos, vinculada à assinatura de um termo de consentimento específico.
Aparentemente, a lei amplia a liberdade contratual e a transparência nas relações financeiras. Contudo, uma leitura detida revela um mecanismo perigoso: o consumidor, atraído pela promessa de juros menores, aceita renunciar a direitos fundamentais garantidos por leis de ordem pública, como o CDC e o CPC.
O artigo 1º do Código de Defesa do Consumidor é claro ao afirmar que o CDC estabelece “normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social”, o que torna irrenunciáveis seus direitos básicos.
Daí decorre a contradição essencial: uma lei infraconstitucional que, sob o pretexto de autonomia contratual, induz o consumidor a abdicar de proteções indisponíveis.
2. O Efeito Cortina de Fumaça: Direitos que Distraem
Os primeiros capítulos da Lei nº 15.252/2025 apresentam uma série de disposições que, embora relevantes, funcionam como direitos de fachada, mascarando as restrições impostas no Capítulo V.
a) Portabilidade Salarial e Débito Automático entre Instituições
A portabilidade de salário, agora automática, é vendida como ampliação da autonomia. Todavia, trata-se de mera facilitação operacional, já prevista em resoluções anteriores do Banco Central.
O mesmo ocorre com o débito automático entre instituições, mecanismo que, na modalidade de juros reduzidos, perde seu caráter voluntário.
O consumidor, ao aderir ao crédito incentivado, não poderá revogar o débito automático, pois o art. 16, IV da nova lei determina que a autorização é “irrevogável e irretratável até a quitação integral da dívida”.
Esse dispositivo colide diretamente com o art. 42 do CDC, que garante ao consumidor o direito de contestar cobranças indevidas e requerer “a repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso”.
b) Direito à Informação: A Transparência que Engana
O art. 12 da Lei nº 15.252/2025 prevê a divulgação destacada do Custo Efetivo Total (CET) e veda aumentos de limite sem anuência do consumidor.
Embora isso aparente reforçar o art. 6º, III, do CDC, que assegura “a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços”, o alcance é superficial.
O consumidor é informado, mas não tem poder de negociação. Trata-se de uma transparência sem equilíbrio, contrariando o art. 6º, IV e V, do CDC, que asseguram “a proteção contra práticas abusivas e a modificação de cláusulas desproporcionais”.
3. O Fim da Ilusão: O Custo Oculto da Execução Simplificada
É no Capítulo V da Lei nº 15.252/2025 que a verdadeira natureza da norma se revela. O crédito com juros reduzidos vem acompanhado de um termo de consentimento específico, no qual o tomador autoriza prerrogativas amplas ao credor.
Trata-se de uma troca desigual: juros menores em troca de renúncia de proteções patrimoniais e processuais.
a) A Quebra da Proteção Patrimonial
O art. 16, III, determina que “valores que superarem o montante de 20 (vinte) salários mínimos referidos no art. 833, X, do Código de Processo Civil, de titularidade do tomador, serão penhoráveis em sua integralidade”.
Ocorre que o art. 833, X, do CPC assegura exatamente o oposto:
“São impenhoráveis os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, bem como os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, salvo para pagamento de prestação alimentícia […]”.
Assim, a nova lei revoga na prática uma proteção que o CPC e o CDC reconhecem como instrumento de preservação do mínimo existencial, este conceito é reafirmado pelo art. 6º, XII, do CDC, incluído pela Lei nº 14.181/2021, que garante “a preservação do mínimo existencial na repactuação de dívidas e na concessão de crédito”.
b) A Mão Amarrada do Pagamento
Na modalidade de juros reduzidos, o consumidor não pode suspender o débito automático, mesmo diante de litígios ou cobranças abusivas.
Isso fere o direito à ampla defesa (CF, art. 5º, LV) e o art. 51, I, do CDC, que declara nulas as cláusulas que “impliquem renúncia ou disposição de direitos”.
c) A Blindagem Processual: A Execução Instantânea
Outro ponto preocupante é a comprovação de mora por simples mensagem eletrônica, bastando a confirmação de entrega.
Essa simplificação processual viola o contraditório e cria um modelo de execução quase automática, permitindo que o credor requeira penhora liminar de bens e valores acima de 20 salários mínimos.
O processo judicial, que deveria proteger o equilíbrio entre as partes, passa a ser mera formalidade de chancela do credor.
4. Reflexão Crítica: Entre Direitos de Fachada e Deveres de Renúncia
A Lei nº 15.252/2025 representa uma guinada no paradigma de proteção do consumidor financeiro.
Sob o discurso da educação financeira e da autonomia contratual, transfere-se ao consumidor o custo da segurança jurídica do credor.
O CDC, em seu art. 4º, I, reconhece a “vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo”, e no art. 4º, III, impõe a “harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo, com base na boa-fé e no equilíbrio”.
Esses princípios são incompatíveis com um sistema que premia a renúncia de direitos como condição para acesso ao crédito.
Em suma, a nova lei cria um ambiente de pseudoempoderamento financeiro, onde o consumidor acredita estar exercendo sua autonomia, quando, na realidade, está assinando a própria fragilidade jurídica.
5. Conclusão: A Modernização da Execução, e Não do Crédito
O que se apresenta como avanço tecnológico e contratual é, na verdade, uma modernização da execução bancária. A lei simplifica a cobrança, acelera a penhora e fragiliza a defesa. Enquanto promete juros menores, entrega uma blindagem processual e patrimonial ao credor.
A reflexão é inevitável: o preço dos juros reduzidos é a liberdade financeira do consumidor.
Como alerta o art. 1º do CDC, os direitos do consumidor são de ordem pública e interesse social, portanto, não podem ser negociados, renunciados ou flexibilizados por termo contratual, ainda que sob o verniz de consentimento informado.
Não há desconto que justifique a perda da proteção jurídica conquistada em mais de três décadas de defesa do consumidor.
A Lei nº 15.252/2025 não democratiza o crédito, apenas privatiza a vulnerabilidade.






