Vivemos numa sociedade em que o envelhecimento se torna realidade cada vez mais evidente. Com o crescimento acelerado da população idosa e as previsões do IBGE de que em 2030 haverá mais brasileiros com idade superior a 60 anos do que crianças, a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) precisa treinar a magistratura para atender a esse que será um dos maiores desafios da próxima década.
Atualmente, dos 212,6 milhões de habitantes registrados pelo IBGE, pouco mais de 15% correspondem à parcela de idosos, ou cerca de 33 milhões de pessoas. A transição demográfica exige que o Poder Judiciário esteja preparado para lidar com questões que envolvem proteção e garantia dos direitos das pessoas idosas, uma vez que o envelhecimento, por si só, traz vulnerabilidades, que podem se agravar quando se sobrepõem a outras condições, como questões de gênero, raça, situação socioeconômica e até deficiência física ou mental.
A Política Judiciária sobre Pessoas Idosas é uma resposta a esse desafio, buscando assegurar um tratamento justo, célere e humanizado no acesso à Justiça para a população idosa. No entanto essa política deve estar ancorada numa visão ampliada, que compreenda todos os aspectos envolvidos.
Nesse ponto, é preciso compreender que o envelhecimento não ocorre de forma isolada. Pessoas idosas que são mulheres, negras ou com deficiência enfrentam barreiras adicionais no exercício de seus direitos devido à combinação de múltiplas formas de discriminação e desigualdade.
É exatamente nesse ponto que entra a importância da Enfam. Como instituição responsável pela formação e pelo aperfeiçoamento dos magistrados, a escola desempenha papel crucial na capacitação para que juízes possam lidar adequadamente com essas demandas. A formação continuada dos magistrados é essencial para que estejam aptos a aplicar a legislação vigente, como o Estatuto do Idoso, de maneira sensível às individualidades, garantindo uma abordagem que respeite as particularidades de cada indivíduo.
A Enfam pode, e deve, implementar cursos e programas específicos voltados para a capacitação sobre a legislação protetiva. No entanto esse treinamento não pode se limitar à aplicação literal da lei. Deve-se desenvolver uma visão crítica e humanista da norma, entendendo como as questões de raça, gênero e classe afetam a experiência do envelhecimento.
O magistrado que compreende as interseccionalidades está mais bem preparado para lidar com casos em que idosas e idosos também enfrentam discriminação por outros fatores. A Enfam pode oferecer cursos e seminários sobre como essas diferentes vulnerabilidades interagem e impactam os direitos e o acesso à Justiça, possibilitando decisões mais justas e adequadas à realidade social.
Muitas vezes, a solução judicial mais adequada não é apenas aplicar a lei de forma técnica, mas buscar soluções restaurativas que respeitem a dignidade da pessoa idosa, levando em conta suas necessidades emocionais, psicológicas e sociais. A Enfam pode treinar os magistrados para identificar essas situações e promover uma Justiça mais inclusiva, que considere o contexto.
Além disso, é importante destacar a necessidade de inovação no treinamento, com o uso de metodologias ativas que promovam o aprendizado prático e reflexivo. Simulações de casos reais, grupos de discussão e troca de experiências entre magistrados são ferramentas poderosas para criar um corpo de juízes mais qualificado e empático.
A Enfam, como instituição de excelência na formação de magistrados, tem a responsabilidade de garantir que nossos juízes estejam prontos para esse desafio, promovendo a Justiça inclusiva e protegendo os direitos daqueles que mais precisam.
Por: Benedito Gonçalves – ministro do Superior Tribunal de Justiça, é diretor-geral da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados