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Fundos dos conselhos de direito: crítica sob aspecto constitucional

Depois que a Constituição de 1988 consolidou a importância da sociedade civil organizada para o projeto democrático do artigo 3º, incisos I a IV, os Estatutos da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990) e da Pessoa Idosa (Lei nº 10.741/2003) instituíram os conselhos de direitos, com atribuições sobre políticas públicas.

Cada conselho está vinculado a um fundo especial, cujas fontes são verbas orçamentárias públicas; doações por pessoas físicas ou jurídicas, dedutíveis (ou não) do imposto de renda devido; emendas parlamentares; valores de termos de ajustamento, ações civis públicas ou infrações administrativas; e convênios com entes privados ou organismos internacionais.

Esses fundos são uma indispensável ferramenta de captação de recursos pelas organizações da sociedade civil organizada (OSCs), que viabilizam as parcerias público-privadas da Lei nº 13.019/2014 através editais de chamamento que, em geral, são para projetos de órgãos governamentais e de organizações da sociedade civil. Algumas vezes delibera-se pelo repasse direto de verbas dos fundos ao poder público, sem chamamento.

Em crítica sobre o direcionamento de verbas dos fundos dos conselhos para órgãos governamentais, bem como do fundo livre, sua premissa é que a cidadania fundamenta o Estado democrático de direito e que a participação das organizações da sociedade civil organizada nas políticas públicas é um instrumento dessa cidadania, que não pode sofrer limites por quem deve fomentá-la.

Como não há previsão legal de chamamentos públicos pelos conselhos para órgãos governamentais, a Resolução nº 137/2019 (artigo 15, caput) do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda); e a Resolução nº 19/2012 (artigo 9º, inciso I) do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa (CNDI), regulamentaram essa possibilidade, contrariando princípios constitucionais e as diretrizes dos Estatutos da Criança e do Adolescente, e da Pessoa Idosa.

Assim, observa-se a recorrência de editais de chamamento para celebração de parcerias com órgãos da administração pública, direta e indireta. Mais grave é quando, com base em resoluções dos conselhos, os órgãos governamentais se apropriam das verbas livres dos fundos para resolver desequilíbrios fiscais ou para executar políticas públicas que deveriam ser financiadas por orçamento próprio, sob a alegação de que as urgências da sociedade, as insuficiências orçamentárias, e as chamadas “brechas na lei”, os respaldam.

Qual o princípio constitucional aplicável à administração pública: da reserva legal (artigo 5º, inciso II) ou da legalidade estrita (artigo 37, caput)?

Diante de uma suposta lacuna legislativa vige o discurso de que na ausência de determinação legal (brecha na lei), o ente público pode usufruir desses recursos. Esquecem que a possibilidade de agir na ausência de legislação específica aplica-se apenas ao setor privado, destinatário do princípio da reserva legal. O setor público, ao contrário, somente pode fazer o que a lei expressamente autoriza.

Com efeito, o princípio da legalidade aplicável à administração pública está previsto no artigo 37, caput, da Constituição, e determina que “a administração pública só tem permissão para fazer o que a lei permite — o que ela expressamente autoriza”; ao contrário dos particulares, que podem realizar “tudo o que a lei não proíbe”. Significa que a legalidade da administração pública é “estrita”: a atuação do agente público exige autorização legal prévia.

Diante disso e das inúmeras leis, decretos e resoluções que compõem o complexo mosaico da legislação que rege as parcerias público-privadas, faz-se necessário uma análise crítica sobre os editais de chamamento para órgãos da administração pública (direta/indireta); e sobre a legitimidade das “apropriações” sem essa formalidade.

Merece destaque que as Resoluções dos Conselhos Nacionais da Criança e do Adolescente (Conanda) e da Pessoa Idosa (CNDI), que autorizam o acesso aos fundos por órgãos governamentais, são atos administrativos infralegais, ou seja, normas administrativas que não podem criar direitos, nem obrigações, podendo questionar-se a constitucionalidade e/ou a legalidade delas.

Nossa Constituição determina (artigo 165, parágrafo 9º, inciso II) que cabe à lei complementar estabelecer as condições para a instituição e o funcionamento dos Fundos, e impõe (artigo 167, inciso IX) que é vedado serem instituídos sem prévia autorização legislativa. A Lei n° 4.320/1964, recepcionada pela Constituição, estabelece (artigo 71) que os fundos especiais se vinculam à realização de objetivos ou serviços determinados (específicos).

Cumpre destacar duas questões:

  1. os Estatutos da Criança e do Adolescente e da Pessoa Idosa parecem estar em desconformidade com a Lei nº 4.320/1964, pois não esclarecem com especificidade os objetivos ou serviços que podem ser realizados com as verbas dos Fundos, sendo que não é constitucionalmente possível delegar aos Conselhos de Direitos a fixação desses critérios, já que suas resoluções são meros atos administrativos;
  2. as Resoluções dos Conselhos de Direitos não podem substituir a lei e, portanto, ao tratarem de matéria reservada à lei, violam o princípio do fundamento de validade da norma jurídica.

São duas também as hipóteses que se almeja analisar:

Abertura de editais de chamamento público que contemplam órgãos da administração pública direta e indireta. Esse ponto merece as observações abaixo:

  • Sob o ponto de vista legal: não há norma geral (lei) que permita ou proíba essa prática. Está em questão o uso indevido dos recursos do Fundo livre – em desrespeito ao princípio da legalidade estrita que se aplica à administração pública (artigo 37, “caput”, da Constituição). Qualquer ato normativo que crie direitos ao ente público sem expressa previsão legal, como nesse caso, não parece estar em conformidade com os requisitos de constitucionalidade.
  • Sob o aspecto político: quando os doadores escolhem uma finalidade (proteção da infância, da juventude e/ou da pessoa idosa), retiram a verba da esfera exclusiva de administração do Poder Público, entregando-a para um Conselho paritário (governo e sociedade civil) que deverá decidir democraticamente sua aplicação. O edital de chamamento contemplando órgãos da administração pública devolve ao Poder Público um recurso que determinada pessoa física e/ou jurídica havia escolhido retirar da esfera de discricionariedade do administrador público e do âmbito da burocracia estatal.

As verbas dos fundos dos conselhos são públicas, mas a abertura de editais para que as instituições do Terceiro Setor (Fundações Privadas e Associações) celebrem parcerias com o gestor público conduz à sua aplicação mediante regras de direito privado, mais céleres do que as normas de direito público. Quando os recursos são devolvidos ao sistema público, retornam à burocracia da máquina pública, um dos grandes problemas do Estado.

Ademais, quando uma pessoa física e/ou jurídica destina parte de seu imposto de renda para um conselho de direitos, ela possivelmente acredita estar financiando projetos de organizações da sociedade civil organizada (OSCs), senão deixaria a verba seguir seu rumo natural e cair direto nos cofres públicos da União.

Grande parte dos valores do fundo livre corresponde a uma parcela do que foi captado pelas organizações da sociedade civil e que foi retido por autorização legislativa. Essa alocação de porcentagem da verba captada (do Fundo vinculado) para o fundo livre possibilita que as organizações com mais capilaridade para captar ajudem as menos habilitadas nessa prática, sugerindo que a sociedade civil organizada atue de forma transversal e colaborativa. Não parece ser razoável que parte desse recurso seja entregue a órgãos governamentais, em detrimento da sociedade civil organizada.

Como parte das verbas dos fundos dos conselhos são originárias também do próprio orçamento público há, ainda, uma clara contradição com a primeira iniciativa do gestor público, que nitidamente pretendia contribuir com o fortalecimento da democracia participativa e da sociedade civil organizada.

Nessas hipóteses, resta supor que a força normativa da Constituição ainda não foi suficientemente compreendida, especialmente no sentido de colocar a sociedade civil como corresponsável na consecução das políticas públicas, consagrando a autonomia que lhe é própria, em pé de igualdade com o Estado.

Verbas repassadas diretamente a órgãos governamentais

A segunda situação, quando, por deliberação dos conselhos de direitos, as verbas públicas dos fundos são repassadas diretamente aos órgãos governamentais, sem abertura de editais ou sequer apresentação de projetos, é ainda mais grave.

É incompreensível que os fundos sejam convertidos em caixa auxiliar da administração pública, caracterizando uma irresponsabilidade orçamentária do poder público, somada ao esvaziamento da finalidade legal desses fundos, que não constituem “sobras” de caixa, e não devem cobrir buracos de gestão. Quando um governo solicita repasse de recursos ao conselho ele não está deliberando uma política pública; está buscando aliviar seu próprio orçamento à custa dos fundos.

Mesmo quando esses recursos são utilizados em situações de calamidade a urgência não pode justificar o uso indiscriminado, ou concentrado numa única organização, sem critérios públicos e sem transparência. Isso pode inverter o papel do fundo que, ao invés de fortalecer a participação e a inovação social, ou seja, o exercício da cidadania e da democracia participativa, em plena calamidade pública converte-se num canal de captura de verbas pelo Executivo. A tragédia não pode ser manipulada para que a urgência justifique a apropriação das verbas — deliberações dos conselhos de direitos nesse sentido desrespeitam a constitucionalidade e a legalidade do uso desses recursos públicos.

Nada legitima que durante graves situações de calamidade no País, a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, que já têm a máquina pública e as fontes de renda do orçamento, se socorram com o dinheiro dos fundos. Como estarão, nesse momento, as urgências das organizações da sociedade civil organizada? Não seriam elas a clamar atenção especial dos Conselhos, já que possuem expertise para atender a população e atuam com mais agilidade no universo do direito privado, ou por que, provavelmente atingidas pela mesma tragédia, precisariam acessar, elas próprias, as verbas que lhes haviam sido destinadas pela sociedade, para poderem subsistir?

Essas práticas constituem uma forma disfarçada de subversão da democracia participativa e de desrespeito à autonomia da sociedade civil organizada, que comprometem seriamente, ainda, a confiança nas doações voluntárias. Quando os Fundos são manipulados para se cumprirem metas do Poder Executivo, ocorre o aniquilamento da função institucional dos conselhos. Outrossim, o Estatuto da Criança e do Adolescente prevê expressamente (artigo 260-I, incisos III IV, V, VI) o uso dos fundos para a realização de projetos.

As situações aventadas desrespeitam a finalidade pública à qual se destinam os recursos e ferem os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência do artigo 37, caput, da Constituição. Segundo a melhor hermenêutica, a gestão dos fundos precisa respeitar critérios públicos de seleção de projetos, mediante controle pelos conselhos, compostos democraticamente por entes públicos e organizações da sociedade civil organizada.

Conclusão

Conclui-se que o direcionamento das verbas dos fundos dos conselhos para órgãos governamentais, com chamamentos públicos ou por deliberação direta dos conselhos, subverte a lógica da participação popular na gestão das políticas públicas, comprometendo a separação entre Estado e sociedade, a democracia, e a compreensão de que o interesse público não é exclusivo do Estado.

Eventual aprovação colegiada dos conselhos quanto à destinação dos recursos dos fundos ao Poder Executivo — sem projeto formal, sem critérios públicos, sem transparência e sem processo de seleção — não descaracteriza as violações constitucionais.

Fere o princípio da impessoalidade o repasse direto do dinheiro do Fundo ao ente público ou mesmo a algumas entidades, ou pessoas, sem processo seletivo. Essa mesma inconstitucionalidade pode ocorrer quando não há transparência quanto aos critérios de escolha dos destinatários que serão atendidos pelo ente público que se “apropriou” das verbas. Para além do desvio de finalidade, tudo isso sugere o uso eleitoreiro dos recursos, hipóteses passíveis de fiscalização pelos órgãos de controle.

O uso das verbas dos fundos dos conselhos por órgãos governamentais pode também estar estimulando os gestores a reduzirem a destinação de recursos orçamentários justamente para as áreas da infância, da juventude e da pessoa idosa, às quais a lei garante prioridade absoluta, já que preveem contar com os fundos.

O tema abordado comporta avaliar que os conselhos de direitos, por despreparo e/ou por sofrerem pressão política, merecem atenção da sociedade, dos agentes políticos, dos Tribunais de Contas e do Ministério Público, para não mais sucumbirem a interesses diversos das finalidades constitucionais.

Há, ainda, preocupações com a falta de rubrica no orçamento do ente público; a ausência de planos de aplicação; o descumprimento da aplicação do percentual para incentivo ao acolhimento e para programas de atenção integral à primeira infância; o uso dos fundos para serviços continuados da gestão pública, para pagamento de colaboradores dos conselhos de direitos e conselhos tutelares, e para a compra de bens para conselhos tutelares; a realização de repasses para Cras e Creas; a aplicação de normas de direito público na celebração das parcerias; e a retenção indevida nos fundos, por longos e injustificados períodos, das verbas, especialmente das vinculadas. Tudo isso somado ao universo de leis descentralizadas que reiteradamente descumprem a Constituição, os Estatuto da Criança e do Adolescente e da Pessoa Idosa, a Lei nº 4.320/1964, e a Lei n° 13.019/2014.

A compreensão desses tópicos é essencial para o regime democrático e para a autonomia da sociedade civil organizada. A dignidade tem pressa!

Por Janine Borges Soares e Keller Dornelles Clos