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A era de ouro da geração prateada

País já tem 32,1 milhões acima de 60 anos que provam como podem ser úteis e realizar sonhos

Dona Glorinha, escritora e aposentada, depois de ter concluído três cursos superiores, tornou-se caloura de medicina aos 86 anos. Seu Oliveiro, aos 94, não abre mão dos serviços na roça. Dona Coleta, aos 88, cuida da casa e ajuda na lida do campo. O professor aposentado Marcelo, aos 82, atende como psicólogo. Já o escritor e bancário aposentado Wanderlino, às vésperas de completar 90, mantém o hábito da escrita e ministra palestras. Como eles, uma multidão de brasileiros da chamada “geração prateada” dá demonstrações diárias de que a vida pode seguir ativa e produtiva independentemente da idade, e que mesmo os mais idosos podem se manter plenamente capacitados, funcionais, dotados de autonomia e úteis.

86 anos, caloura de medicina:  Maria da Glória Mameluque

São pessoas cuja trajetória reforça a importância de combater o etarismo, além de provar que não existe limite de idade para realizar sonhos. Homens e mulheres que integram um contingente que cresceu nas últimas décadas: o Brasil, de acordo com o censo demográfico de 2022, medido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), tem 32,113 milhões de habitantes com 60 anos ou mais. Também chamados 60+, eles representam quase 16% da população total do país.

Uma das integrantes da geração prateada é a escritora, advogada, aposentada e, aos 86 anos, caloura de medicina Maria da Glória Caxito Mameluque. Viúva e avó, dona Glorinha, como é carinhosamente conhecida, acaba de retornar à sala de aula para se tornar médica, após ser aprovada em primeiro lugar no vestibular da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) para vagas de graduação destinadas a candidatos com 60 anos ou mais.

Além da persistência, determinação e da demonstração de como se deve evitar o preconceito de idade, dona Glorinha é um exemplo de superação. Venceu uma barreira ligada à própria área que agora estuda: a saúde. Em dezembro de 2020, em plena pandemia de COVID-19, ela foi diagnosticada com câncer de mama. Encarou a doença. Foi submetida a uma cirurgia e ao tratamento de radioterapia e quimioterapia, encerrado em março de 2023. “Acredito que estou curada, mas ainda faço acompanhamento com medicação, que vai até 2026 – por cinco anos”, afirma.

Como se fosse pouco, dona Glorinha decidiu contar a batalha e a superação da doença em um dos seus livros, intitulado “Minha luta contra o câncer”. “É um testemunho de que devemos enfrentar a doença com esperança e fé, na tentativa de ajudar outras pessoas que passam pelo mesmo problema. A obra narra toda a minha história, desde quando recebi o diagnóstico e iniciei o tratamento”, afirma a moradora de Montes Claros, que tem outros 28 títulos publicados – e dois ainda a serem lançados.

“Fiz todo o tratamento com esperança e fé em Deus e na medicina, e nunca desanimei, sempre acreditando que ficaria curada. Foi um grande desafio, talvez até maior que esse de agora”, afirma, sobre a nova graduação que iniciou. “É preciso confiar em Deus e na medicina, lembrando sempre que há vida após o câncer – e cuidar para detectar os primeiros sinais e procurar o tratamento o mais rápido possível”, ensina.
A caloura de medicina vai para seu quarto curso superior. Antes, já obteve diplomas de enfermagem, direito e psicologia. Mãe de quatro filhos e nove netos, pode-se dizer que a própria descendência a inspirou a voltar a estudar na área de saúde, pois tem uma filha médica e quatro netos médicos.

A determinada brasileira revela que, ao ser aprovada no vestibular e iniciar o curso para se tornar médica, realiza um sonho que vem da juventude – antes do casamento e da chegada dos filhos. “Sempre alimentei o sonho de cursar medicina. Tentei algumas vezes o vestibular em universidades públicas e não consegui. Quando vi o edital do vestibular da Unimontes (que tem ensino gratuito), com vagas remanescentes para idosos, percebi que minha oportunidade tinha chegado. Por isso me inscrevi, e graças a Deus deu certo”, afirma.

Uma caloura como qualquer outra

Glória Mameluque relata como foi sua chegada à universidade aos 86 anos. “No primeiro dia de aula, o sentimento maior foi a expectativa de como seria acolhida pelos colegas jovens, que foi rapidamente desfeita pelo carinho com que fui recebida e como me trataram como uma pessoa igual a eles na idade”, explica. Enturmada, ela participou da brincadeira do “trote” feita pelos veteranos; também ganhou o trote dos filhos e netos. “Estou me sentindo uma caloura igual aos outros.”

Dona Glorinha disse que seu objetivo é inspirar outras pessoas da terceira idade a nunca desanimar. “Eu digo àqueles que têm um sonho, que não desistam, nunca, da realização. Idade não é empecilho: sempre é tempo de recomeçar.”

Como escritora de crônicas, contos e poesias, Glória Mameluque afirma que se inspira em outras mulheres das letras, como Cora Coralina, Rachel de Queiroz e Adélia Prado. “Às vezes, me criticam, dizendo que minha linguagem é muito coloquial. Eu não uso palavras difíceis. Mas eu vi que a Adélia Prado tem uma linguagem simples, da dona de casa”, comenta.

No vestibular 60+ da universidade pública, Glorinha superou o próprio filho, o servidor público e jornalista Gustavo Mameluque, de 61, que também fez a prova de redação para as duas vagas de medicina e não foi aprovado. “Desde a minha inscrição no vestibular, eu torcia para que a minha mãe ficasse em primeiro lugar. Sempre entendi que a vitória dela seria minha vitória. O reconhecimento de uma mãe amorosa, determinada e inteligente”, testemunha Gustavo.

Ele salienta que a família, da mesma forma, ficou orgulhosa com a atitude da matriarca ao ingressar no curso de medicina. “Entendemos que ela quis mostrar aos filhos e netos que nunca devemos abandonar nossos sonhos. Realizou seu grande sonho, apesar da idade, depois ter enfrentado um câncer de mama. Penso que é um modelo de resiliência”, afirma.

Fonte: Jornal Estado de Minas Gerais