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‘A vida com demência ainda é vida, e pode ter dignidade e afeto’

Alzheimer é a doença mais temida entre os brasileiros Foto: Ocskay Bence/Adobe Stock

Elaine Mateus costuma dizer que “nasceu no mundo das demências” no dia em que sua mãe recebeu o diagnóstico de Alzheimer, em setembro de 2012, no mesmo mês em que completava 74 anos. Já havia experimentado a doença de perto — os avós maternos também haviam sido diagnosticados, embora, na época, se dissesse apenas que estavam “esclerosados”. Mas desta vez, ela entendeu que precisaria aprender tudo o que pudesse para ajudar a mãe a atravessar a nova fase.

Começou pesquisando sozinha, navegando por sites, lendo tudo o que encontrava. Descobriu, porém, que quase não havia informação, nem grupos de apoio presenciais, e que o discurso dominante sobre a demência era de perda, fim e tristeza. Nada dizia sobre a mulher ativa e alegre que sua mãe continuava sendo.

Foi então que Elaine percebeu que em outros países existia outro olhar — mais humano, mais acolhedor — e decidiu que o Brasil também precisava conhecê-lo. Entrou em contato com a Alzheimer’s Association, pediu autorização para traduzir os materiais da entidade e começou, de forma espontânea, a compartilhar o que aprendia.

Ao aposentar-se como professora universitária, passou a dedicar-se como ativista em defesa dos direitos das pessoas com demência e de suas famílias. Atualmente, é presidente da Federação Brasileira das Associações de Alzheimer (Febraz). Confira a entrevista completa.

Os dados mostram que o diagnóstico de demência é o mais temido. No Brasil, 78% das pessoas dizem temer o Alzheimer mais do que qualquer outra doença. O medo é decorrente dessa ideia tão focada no incurável?

Eu gosto sempre de dizer que, quando faço a crítica ao discurso biomédico, não é uma crítica à ciência nem aos profissionais de saúde. Estou falando também de discurso no sentido conceitual, não no senso comum. Falo de toda uma estrutura, uma engrenagem de linguagem que vai configurando essa ideia da perda, da impossibilidade — e isso gera medo.

Quando canonicamente se define a demência como uma doença neurodegenerativa, progressiva e sem cura — e você pode dar um Google e vai encontrar essas três palavras aparecendo de diferentes maneiras —, eu sempre digo: quem quer saber se tem isso? A própria definição, a própria informação sobre a doença é colocada de um modo que nos assusta e nos repele.

Além da ideia de que é inevitável, não é? Pesquisas mostram que duas em cada três pessoas — e até 62% dos profissionais de saúde — ainda acreditam que a demência é uma parte natural do envelhecimento. O que explica esse equívoco tão persistente?

Primeiro, há o desconhecimento. A gente aprende sobre diabetes, colesterol, hipertensão — todas essas questões fazem parte da nossa rotina de saúde. Mas não aprendemos sobre a saúde do cérebro. Mas também há um outro atravessamento que diz respeito ao “idadismo”. Existe a ideia de que pessoas idosas não precisam de tanto cuidado, importância ou investimento de tempo e recursos. E daí, a gente naturaliza a teimosia, o esquecimento, como se fossem partes inevitáveis do envelhecer — e isso é um erro.

Esse olhar atravessa toda a sociedade, inclusive os profissionais de saúde, que muitas vezes minimizam as queixas e deixam de investigar. É comum, por exemplo, que pessoas com demência recebam tratamento para depressão por anos, como aconteceu com a minha mãe. É uma barreira que precisamos superar: nada é normal, nada é natural em tempo algum.

Como construir uma narrativa mais inclusiva e humana sobre a demência?

Eu acho que a narrativa precisa olhar sem romantizar a condição. Ela é, de fato, uma condição que vai impor uma série de perdas no caminhar, mas a gente pode fazer uma narrativa que defina a demência como uma etapa na fase da vida de muitas pessoas a partir de uma certa idade, que vai colocá-la diante da necessidade de reorganizar a rotina, a estrutura familiar, mas para qual há tratamento.

Não ter cura é diferente de não ter tratamento. Quando a gente convence as pessoas de que há intervenções possíveis, que trazem resultados na qualidade de vida e na dignidade, o medo diminui. Ele não desaparece, porque ninguém quer pensar na finitude. Mas entender que a vida é um ciclo finito nos dá coragem. O que você puder fazer para viver esse processo com dignidade, deve fazer. Pôr a cabeça num buraco não é uma alternativa.

Não ter cura é diferente de não ter tratamento – Elaine Mateus, presidente da Federação Brasileira das Associações de Alzheimer (Febraz)

E essas intervenções passam também pelas terapias não farmacológicas, certo? Quais são e quais as evidências dos benefícios?

Hoje já existe uma literatura robusta sobre como as terapias não farmacológicas ajudam a manter a funcionalidade da memória. Existem aquelas no campo do trabalho de um terapeuta ocupacional, que vão ajudar a estabelecer rotinas para que a pessoa mantenha a sua funcionalidade e sua independência por um maior tempo. Existem também as terapias de cunho social, que ajudam a manter os vínculos importantes na comunidade. Existe ainda a musicoterapia, já muito conhecida na área da saúde mental mas que cada vez mais se mostra eficaz para as pessoas com demência.

Todas essas estratégias não medicamentosas dão qualidade de vida e ajudam a manter as capacidades funcionais pelo maior tempo possível. No Instituto Não Me Esqueças [criado por Elaine, em Londrina] há pessoas com diagnóstico há três anos que continuam com a mesma funcionalidade. É algo surpreendente. Criaram vínculos, sentem falta umas das outras — mesmo quando não lembram o nome.

Você costuma dizer que a pessoa perde a memória, mas não os sentimentos. Como compreender essa dimensão afetiva da demência?

Eu gosto de fazer essa reflexão porque, como sociedade, a gente acha que tudo está no cérebro, é tudo cognição. Mas quando um bebê nasce, ele não sabe o seu nome, ele não sabe a relação que ele tem com você, mas existe um vínculo. E aquela criança, no primeiro segundo da existência, estabelece com você essa relação de confiança, de afeto, de amor profundo. Ela sabe que você é a pessoa em quem ela pode confiar.

É a mesma coisa na demência: a pessoa pode não saber seu nome ou sua relação, mas sabe que é em você que ela pode confiar. Então, não existe “não estar mais lá”. Ela sente, percebe, reconhece de outras formas. Precisamos reconstruir essa ideia, porque muita gente é negligenciada por acharem que, se não fala, também não sente — e isso não é verdade. Existem inúmeras maneiras de a gente manter os vínculos e os afetos.

Mas tudo isso depende de que o diagnóstico aconteça em tempo oportuno, não é?

Sim. Porque nada disso é possível com diagnósticos tardios. As terapias, inclusive as mais modernas, mostram resultados nos estágios iniciais, quando ainda há comprometimento cognitivo leve. É nesse momento que a pessoa pode participar das decisões sobre seu futuro — se quer morar em casa, se aceita uma instituição, se quer ser alimentada por sonda. Em geral, no Brasil, o diagnóstico chega tarde, e a pessoa já tem pouca clareza da própria condição.

E quando o diagnóstico chega, o peso recai quase todo sobre a família. Como você enxerga o papel — e a sobrecarga — dos cuidadores?

Mais do que outras doenças, a demência fica muito na conta da família e não da política pública. No início, é reorganizar rotinas e acompanhar; depois, o cuidado se torna técnico, emocional e financeiro. Muitos deixam o emprego, acumulando uma rotina de oito, dez horas de cuidado. Mas o pior: falta suporte para quem cuida, mas também para quem vive com o diagnóstico. Para o cuidador, é desumano ver quem se ama sem acesso a terapias, acompanhamento e espaços de convivência.

Compare a um diagnóstico de câncer, por exemplo: a conversa não se encerra no apoio ao familiar — existe tratamento, medicamento, acolhimento. No caso da demência, quase nada é ofertado. É fundamental que o Estado reconheça o cuidado como um direito e invista em centros especializados para pessoas com demência. Precisamos de políticas que incluam terapias não farmacológicas e garantam a permanência dessas pessoas na comunidade. Sem isso, o cuidador continuará sozinho, sobrecarregado e sem alternativas.

Falta suporte para quem cuida, mas também para quem vive com o diagnóstico – Elaine Mateus, presidente da Federação Brasileira das Associações de Alzheimer (Febraz)

Tem-se dito que, na demência, tratar não é recuperar o que foi perdido, mas valorizar o que permanece. O que isso significa na prática?

Significa entender que as perdas virão, mas que é preciso valorizar o que ainda está presente. Se a pessoa não cozinha mais, mas se alimenta sozinha, isso precisa ser reconhecido e estimulado. Criar oportunidades para que ela continue exercendo o que ainda pode fazer é garantir vida plena — que é fazer tudo o que é possível no momento em que ela está. Em vez de dizer “minha mãe não lembra mais o meu nome”, posso dizer “minha mãe sabe quem eu sou”. É olhar o copo meio cheio, construir uma narrativa que mostra potência, não impotência.

Fonte: Estadão

Elaine MateusPresidente da Federação Brasileira das Associações de Alzheimer (Febraz)