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Aceitar as mudanças do corpo que envelhece pode ser libertador

Foto: LIGHTFIELD STUDIOS/Adobe Stock


Ao refletir sobre o tema desta coluna, lembrei imediatamente da última grande entrevista que o querido Ziraldo deu ao Estadão, na qual afirmou: “Fiquei velho de repente!” Primeiro, é importante dizer que a palavra “velho” não deve ser vista como algo negativo, mas um privilégio – uma oportunidade para se conectar consigo mesmo e com aqueles que se ama.

Porém, também não podemos cair em discursos superficiais que apenas romantizam a longevidade, sem encarar todos os potenciais desafios que pessoas idosas enfrentam e irão vivenciar nesse processo – como as mudanças corporais. Quando há reconhecimento e planejamento sobre condições capazes de limitar a rotina, é possível proteger a dignidade e a qualidade de vida de um idoso.

Estudos científicos apontam, por exemplo, que aproximadamente 40% dos indivíduos idosos apresentam uma redução na audição, o que impacta o dia a dia. A diminuição pode ser identificada com um teste no consultório ou levando em conta a queixa da própria pessoa e dos familiares. Após o diagnóstico do problema, a recomendação de aparelhos auditivos, capazes de garantir a amplificação sonora, resgata o capital social, reduz a solidão e ajuda a prevenir o Alzheimer.

Já a visão representa outro possível desafio com o passar dos anos, e também deve ser avaliada em consultas de rotina – inclusive com um profissional da oftalmologia. Problemas como a famosa “vista cansada” ou até mesmo a catarata são facilmente reconhecidos e, quando tratados, transformam a vida de alguém.

Por fim, e não menos importante, penso nos músculos e ossos, tão necessários para a manutenção da independência para as atividades diárias, como tomar banho, ir ao banheiro ou entrar e sair da cama. Há um pico de construção de massa muscular por volta dos 30 anos e, dependendo de fatores ambientais (como alimentação e exercícios físicos) ou questões hormonais e genéticas, podemos apresentar uma queda acentuada em sua função.

Dessa forma, há um grande lema para levarmos para a vida toda: “Quanto antes, melhor, mas nunca é tarde para começar”. Isso se aplica a qualquer hábito saudável, como combater o sedentarismo e evitar o cigarro, o abuso de álcool ou o consumo de alimentos ultraprocessados.

Entretanto, alguns de nós, infelizmente, irão experimentar alguma incapacidade musculoesquelética com o passar dos anos. Vejo, nesse contexto, muitas pessoas idosas relutando em utilizar uma bengala – acessório que pode garantir mais estabilidade e funcionalidade, menos dor e um menor risco de queda. Acontece que alguns temem a visão estereotipada dos outros, mas muitos realmente temem pedir ou evidenciar que necessitam desse tipo de ajuda, algo complexo e desafiador.

Sei que muitas vezes é mais fácil falar do que colocar algumas dessas ações em prática, mas um possível caminho é ouvir e tentar dar vazão a todos os sentimentos daquele momento.

Desenvolver uma dependência, sobretudo quando se trata de uma pessoa anteriormente ativa socialmente, pode ser um período de luto – algo que não acontece apenas quando alguém que amamos morre. Embora doloroso, esse luto tem o potencial de reconstrução e resiliência. A verdade é que reconhecer nossas limitações nos permite planejar, nos proteger e seguir em frente – de bengala e também no sentido metafórico.

Por  Milton Crenitte – Médico geriatra, doutor em ciências pela Universidade de São Paulo (USP) e diretor técnico do Centro Internacional de Longevidade Brasil (ILC-BR)

Via Estadão