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Uma decisão teratológica de Gilmar Mendes

Marcelo Camargo/Agência Brasil

O ministro Gilmar Mendes acolheu liminarmente o pedido formulado pelo Solidariedade e pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) em duas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) para que só a Procuradoria-Geral da República (PGR) possa apresentar pedido de impeachment de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Ao cassar a legitimidade de todo cidadão para denunciar, perante o Senado, ministros da Corte e o próprio procurador-geral por crimes de responsabilidade, o decano não apenas contorceu a Lei 1.079/50, a chamada Lei de Impeachment, como obliterou, sozinho, uma sistemática jurídica que, ao longo de 75 anos, atravessou três Constituições e jamais fora questionada.

A Lei de Impeachment é explícita em seu art. 41: o oferecimento de denúncia contra ministros do STF e o procurador-geral da República “é permitido a todo cidadão”. Era assim desde 1950 – até ontem. A lei seguiu incólume pelas Constituições de 1946, 1967 e 1988. Jamais houve dúvida sobre sua recepção pela ordem constitucional vigente. Trata-se de um arcabouço legal consolidado e, ademais, coerente com a lógica republicana que confere ao Senado a prerrogativa de exercer o controle externo de autoridades de altíssima relevância institucional – como são o presidente da República, os ministros do STF e o chefe do Ministério Público Federal – a partir do escrutínio de denúncias oferecidas contra elas por qualquer do povo.

O argumento central do Solidariedade e da AMB, segundo o qual a Carta de 1988 não teria recepcionado dispositivos da Lei 1.079/50 relativos ao impeachment de ministros do STF, é juridicamente fraco e politicamente conveniente. Essa súbita “urgência” fabricada em setembro, quando as ADPFs 1.259 e 1.260 foram propostas, chega justamente na quadra histórica em que o Supremo mais tem recebido críticas por condutas potencialmente indecorosas, quiçá ilegais, de alguns de seus ministros. Esse liame temporal é incontornável. Nesse sentido, a liminar de Gilmar Mendes expressa mais uma reação corporativista do que uma preocupação genuína do decano com o aprimoramento institucional do País.

A crise de confiança que conspurca a imagem do STF tem duas raízes distintas. De um lado, a desabrida campanha de deslegitimação impulsionada por inimigos declarados do Estado Democrático de Direito, alguns dos quais já condenados e presos por tentativa de golpe. De outro, a própria Corte contribuiu para seu desgaste ao tolerar entre os seus integrantes comportamentos em tudo incompatíveis com a dignidade da magistratura. Os exemplos pululam: usurpação de competências de outros Poderes, afrontas à Lei Orgânica da Magistratura Nacional, presença em convescotes com empresários regados a conflitos de interesses, manutenção de atividades privadas inadequadas à função de juiz, entre tantos outros.

Nada disso diz respeito ao chamado “crime de hermenêutica”, como alegam os autores das ADPFs. Não há uma vírgula na Lei 1.079/50 que sequer sugira que um ministro do STF é passível de impeachment pelo teor de suas decisões. Trata-se, isso sim, de responsabilizá-lo por eventuais atos que violem a lei, a ética republicana, o decoro e a dignidade do cargo.

Contam-se às centenas os pedidos de impeachment formulados por cidadãos comuns contra ministros do STF desde 1988. Nenhum foi aceito. Ou seja, o Senado tem cumprido com prudência – talvez até excessiva – sua missão constitucional de escrutinar as denúncias, justamente para não permitir abusos ou a “instrumentalização” de que fala Gilmar Mendes em sua decisão. Isso tanto prova a maturidade institucional do Senado, como autoriza a suspeita de que haveria uma espécie de arranjo entre o STF e os autores das ADPFs com o objetivo de blindar os ministros na próxima legislatura, quando a oposição ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva espera ter a maioria do Senado. Tão teratológica é a liminar do sr. Mendes que não se pode condenar aqueles que veem sua decisão sob esse prisma.

O impeachment de um ministro do Supremo é indesejável e traumático. Mas está previsto em lei. É um instrumento excepcional, reservado a hipóteses igualmente excepcionais. Seu eventual uso cuidadoso não ameaçará os pilares da República. Ao contrário, reafirmá-los-á, ao mostrar que, no Brasil, não há poderes absolutos.

Por Notas & Informações – Estadão