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Sabor de morte

Vape — Foto: Freepik

A Anvisa proibiu os aditivos saborizantes em 2012, por meio da Resolução RDC 14/2012. Agora, o caso chega ao Supremo Tribunal Federal

A indústria do tabaco é assassina. Certamente uma das que matou mais gente na história da espécie humana. E mortes muito lucrativas. O cigarro é responsável por mais de 173 mil óbitos por ano no Brasil, e a nicotina continua sendo uma das drogas mais viciantes conhecidas. O Brasil construiu uma politica pública integrada e com múltiplas ações, como avisos nos maços, campanhas educativas, restrição de propaganda e venda, proibição de fumo em locais fechados e outras, que foi altamente efetiva, e que reduziu o tabagismo em mais de 50% em cerca de 30 anos. Mas a indústria segue inventando novas formas de seduzir o público mais vulnerável: os adolescentes.

Os vapes viciam mais e seduzem adolescentes nas redes sociais. Os cigarros e narguilés com sabor são outra armadilha recente. Os aditivos de menta, chocolate, baunilha ou frutas mascaram o gosto ruim e a aspereza do tabaco, tornando o primeiro contato mais agradável. Ao esconder o desconforto natural da fumaça, esses produtos facilitam a iniciação e aumentam a chance de dependência precoce. E como 90% dos fumantes começam antes dos 18 anos, cada adolescente fisgado representa um cliente potencialmente fiel por décadas — ou até que a doença vença.

Com base em vasta evidência científica, a Anvisa proibiu os aditivos saborizantes em 2012, por meio da Resolução RDC 14/2012. Foi uma decisão técnica, de proteção à saúde pública e especialmente às crianças e adolescentes. Mas, desde então, a medida foi travada por uma enxurrada de ações judiciais movidas pela indústria do tabaco e seus aliados. São mais de 40 processos simultâneos tentando barrar a norma — um exemplo claro de interferência corporativa em políticas de saúde.

Enquanto isso, os dados mostram o resultado dessa paralisia. Entre 2013 e 2020, a prevalência de tabagismo entre jovens de 18 a 24 anos ficou estagnada em torno de 7%, enquanto outras faixas etárias continuaram diminuindo. E o uso de narguilé nessa mesma faixa quadruplicou. Entre adolescentes de 13 a 17 anos, 27% já haviam experimentado o narguilé em 2019. Ou seja: o gosto adocicado e a fumaça “divertida” se tornaram porta de entrada para uma das dependências mais difíceis de abandonar.

Agora, o caso chega ao Supremo Tribunal Federal, que julgará a constitucionalidade da RDC 14/2012. O relator, ministro Cristiano Zanin, pediu vista, mas o prazo está se encerrando — e o julgamento deve ser retomado em breve. A decisão do STF será histórica: confirmar a validade da norma da Anvisa é proteger milhões de jovens e reafirmar o direito à saúde como bem público inegociável.

Uma carta aberta assinada por dezenas de instituições de saúde, universidades e especialistas, liderada pela ACT Promoção da Saúde, lembra que o Brasil é referência mundial no controle do tabaco. Mas também alerta: os sinais de retrocesso entre os jovens exigem reação urgente. Não se trata de moralismo nem de paternalismo, mas de ciência. Os aditivos de sabor não são inofensivos: eles aumentam a toxicidade, dificultam a cessação e transformam o cigarro em um produto mais viciante.

Proibir os sabores artificiais é, portanto, uma medida de proteção à infância, não uma ingerência sobre a liberdade individual. Afinal, liberdade sem informação e sem limites éticos vira exploração. Nenhum adolescente escolhe de forma consciente se tornar dependente de nicotina. E nenhuma empresa deveria ter o direito de manipular o paladar para aumentar vendas, se o desfecho é, ao fim e ao cabo, adoecer e matar pessoas.

A história do controle do tabaco no Brasil é uma das maiores conquistas da saúde pública. Foi construída com base em evidências, coragem e independência diante de pressões econômicas. O STF tem agora a oportunidade de honrar essa trajetória e reafirmar que a vida de nossos jovens é que deve ter sabor, não os cigarros.

Por Daniel Becker