
A cultura digital é cúmplice e promotora da crise da verdade, que marca a era na qual apelos emocionais derrotam fatos objetivos. A lógica dos algoritmos e do engajamento sequestrou a racionalidade e, com ela, a noção do que é verdadeiro ou falso. O discurso –procedimento argumentativo orientado ao entendimento mútuo– morreu. Resta o zunido de dados que mantém tribos digitais coesas pelo ódio a qualquer opinião que lhes ameace a identidade.
Influencers bem-intencionados têm se embrenhado nesse pântano da irracionalidade, aspirando iluminá-lo com um facho de ciência. No meio acadêmico, ganha força a crença –que um dia, ingenuamente, compartilhei– de que o negacionismo nas redes cederia com a melhora da comunicação científica. Em entrevista ao Jornal da USP, Sabine Righetti, da Unicamp, atribui essa missão ao cientista: “o pesquisador não se comunica, não engaja, não toca o coração das pessoas”.
Segundo ela, “a comunicação não é linear: vou comunicar, logo as pessoas deixarão de ser antivax. É preciso comunicação estratégica e afetiva”. De fato, o afeto produz efeitos mais imediatos que a razão. Porém, como lembra Byung-Chul Han, “na comunicação afetiva não prevalecem os melhores argumentos, mas as informações com maior potencial de estimular”. Se a emoção suprime a racionalidade discursiva, a comunicação decai à mera transmissão de informação.
É preciso também reconhecer que a ciência não se comunica a quem não dispõe das condições para apreendê-la. É o caso do brasileiro médio, cujo letramento científico é baixíssimo. A tentativa de corrigir essa deficiência com “comunicação afetiva” degenera em semiformação (Halbbildung). Theodor Adorno, da Escola de Frankfurt, usou o conceito para descrever uma formação incompleta e deformada, gerada pelo consumo de cultura como mercadoria, que torna o indivíduo alienado e conformista.
Adorno não viveu a era digital, mas sua crítica é atual. As redes não apenas reproduzem, como amplificam a semiformação. A aparente liberdade de acesso e produção de conteúdo não garante autonomia; a velocidade da informação prolonga a alienação. E à medida que o “semiformado” das redes se sente pleno com a fartura de fragmentos informacionais que recebe, afasta-se da formação verdadeiramente crítica (Bildung). Eis o perigo: a semiformação não é um meio-termo entre incultura e cultura, mas o interdito desta.
A ciência é alérgica à lógica das redes. Sua narrativa é lenta, dirigida aos fatos, sensível à refutação e ao contraditório. Não diz o que se espera ouvir nem oferece verdades absolutas. Assenta-se na razão, não no afeto. Opõe-se ao embrutecimento das câmaras de eco.
Neste paradoxo se resume a impossibilidade da ciência nas redes: enquanto preserva sua essência, ela não engaja; transformada em mercadoria digital (posts, tweets, reels, reacts), degrada-se em semiformação.
Assim, o cientista TikToker, ao se justificar pela “boa qualidade” da informação que produz, incorre em contrassenso: na cultura digital, informação não é mais portadora de verdade ou conhecimento, mas fragmento efêmero de um fluxo algorítmico.
Países genuinamente comprometidos com a popularização científico-cultural seguem a via da educação: currículos coerentes e exigentes, ensino baseado em práticas de investigação, estímulo ao pensamento crítico, formação continuada de professores e políticas guiadas por evidências. É nesse campo discursivo –portanto, analógico– vinculado ao projeto de nação que a comunicação da ciência deve exercer sua função ético-política e pedagógica de emancipação.
