
Clarice Lispector dizia que “liberdade é pouco; o que eu desejo ainda não tem nome”. No Brasil de hoje, talvez o desejo mais elementar de uma mulher seja simplesmente permanecer viva. Clarice escrevia sobre mulheres silenciadas, moldadas, diminuídas, mulheres que desapareciam dentro de si mesmas. Essa narrativa é exatamente o prólogo do feminicídio. Antes do crime, existe o controle; antes da agressão, o apagamento; antes do golpe final, o medo. Clarice também dizia: “sou mais forte do que eu”, mas nenhuma mulher deveria precisar ser forte demais apenas para sobreviver.
A sociedade que produz feminicidas é a mesma que produz mulheres invisíveis. Invisíveis nas estatísticas, nos orçamentos, nas prioridades do Estado, nos processos judiciais que não andam, e até dentro de casa, onde sua dor é tratada como parte da rotina. A invisibilidade é a primeira violência, e, como toda violência negligenciada, evolui. Ser invisível não é não existir, é existir sem proteção, sem consequência para quem agride, sem um sistema que enxergue o risco antes que ele se torne morte anunciada.
Como médica, vejo diariamente o rastro dessa violência. As mulheres chegam feridas, ameaçadas, silenciadas, e quase sempre com um histórico que já apontava o desfecho. O feminicídio não é imprevisível: é a etapa final de uma escalada conhecida e evitável. Por isso, não basta repetir que homens e mulheres têm direitos iguais. O que salva vidas são políticas públicas concretas, mensuráveis e executadas com rigor.
O Brasil ultrapassa 1.400 feminicídios por ano. Muitas dessas mulheres pediram ajuda, mas encontraram portas fechadas e uma rede desarticulada. A experiência internacional é clara: quando o risco é identificado precocemente, quando o agressor é monitorado e quando o Estado reage rápido, as mortes caem de forma consistente. Não é ideologia; é evidência.
Monitorar agressores é medida básica. Países que adotaram tornozeleira com monitoramento reduziram em até 20% os assassinatos. No Brasil, deveria ser obrigatório para casos graves, reincidência, ameaça com arma ou descumprimento de medida protetiva. Falta decisão, não tecnologia.
Outra ação urgente é equipar mulheres em risco com botão de pânico ou dispositivo conectado 24h à polícia. Onde foi implantado, salvou vidas. É política pública de baixo custo e de impacto imediato. Delegacias da Mulher 24 horas, com equipes completas, também são indispensáveis: a maior parte das agressões ocorre à noite, quando muitas delegacias estão fechadas. Sem atendimento, a mulher volta para casa, e muitas não voltam vivas.
O descumprimento de medida protetiva precisa resultar em prisão imediata. Cada violação ignorada é um ensaio para o feminicídio. Além disso, agressor sem reabilitação obrigatória continua sendo um risco permanente. Programas estruturados reduzem reincidência. Fingir que punição isolada basta é perpetuar as estatísticas.
A saúde também precisa assumir seu papel. Hospitais e emergências são portas de entrada essenciais para identificar risco antes que o sistema de segurança o faça. Protocolos padronizados, notificação qualificada e acionamento imediato da rede de proteção evitam que casos desapareçam no vazio institucional.
Por fim, o país precisa de um Sistema Nacional de Risco, integrando denúncias, medidas protetivas, histórico de violência, posse de armas e notificações da saúde. Hoje, cada órgão enxerga apenas um fragmento: quem morre é a mulher que se perde entre esses fragmentos. E diante do fato de que 40% dos feminicídios envolvem arma de fogo, é indispensável suspender automaticamente porte e posse de agressores denunciados.
O feminicídio não é inevitável, é evitável. O Brasil sabe o que funciona, mas hesita em implementar. Cada hesitação custa vidas. Cada adiamento tem nome, rosto, história interrompida.
A Espanha é hoje referência mundial na redução de feminicídios porque fez exatamente o que o Brasil ainda hesita em fazer: integrou todos os dados de violência em um sistema nacional unificado, criou um algoritmo estatal de avaliação de risco obrigatório em cada denúncia, instituiu tribunais exclusivos para violência contra a mulher que concentram decisões de proteção, família e esfera criminal, implantou monitoramento eletrônico de agressores, e alertas em tempo real, estruturou delegacias e equipes especializadas 24 horas, estabeleceu programas obrigatórios de reeducação e responsabilização de agressores e investiu continuamente em campanhas públicas baseadas em evidências. O resultado foi uma queda consistente de mortes ao longo de duas décadas.
Enquanto isso, o Brasil mantém sistemas fragmentados, monitoramento incipiente, delegacias fechadas à noite, medidas protetivas sem execução rigorosa e ausência de programas estruturados para agressores. A diferença entre os dois países não é cultural, mas política: a Espanha decidiu enxergar suas mulheres e agir, o Brasil, ao não implementar o que funciona, continua produzindo mulheres invisíveis, aquelas que pedem ajuda, mas se perdem nos vazios institucionais que separam a denúncia da proteção real.
E aqui volto a Clarice. Em suas páginas, ela revelava mulheres que lutavam para existir num mundo que tentava apagá-las. A mulher invisível de hoje é a mesma que Clarice intuiu: uma mulher que sente, teme, resiste, mas que não deveria resistir sozinha. Torná-la visível é nosso dever mais urgente. Porque, quando a sociedade finalmente a enxerga, o feminicídio deixa de ser destino para se tornar fracasso superado.
Por Ludhmila Hajjar – via O Globo





