A insegurança jurídica é, talvez, a mais silenciosa e persistente das crises brasileiras. Mais do que um entrave ao investimento e ao crescimento econômico, tornou-se um dos principais motores da deterioração ambiental. A ausência de parâmetros claros, o surgimento de compromissos paralelos e a volatilidade de decisões estatais desenham um cenário em que os agentes privados ficam impedidos de planejar no longo prazo, enquanto os próprios agentes públicos se veem em constante conflito decisório.
Um caso ilustra com clareza esse cenário: a Moratória da Soja. Firmada em 2006, foi um acordo entre empresas, associações e órgãos estatais para suspender a compra do grão cultivado em áreas desmatadas na Amazônia após julho de 2008. Embora tenha contribuído para reduzir a pressão sobre a floresta, a moratória, tal qual desenhada, nunca encontrou respaldo legal: foi um arranjo privado, construído à margem do Código Florestal e baseado apenas na autorregulação de agentes privados.
Pelo Código Florestal, produtores localizados no bioma amazônico devem preservar 80% da área de suas propriedades – a chamada reserva legal –, enquanto o restante pode ser utilizado para a produção agrícola. A Moratória da Soja, porém, impôs um critério mais rígido: a exclusão do mercado de qualquer produtor que ampliasse suas lavouras sobre áreas desmatadas após 2008, ainda que dentro dos limites legais. Criou-se, assim, uma regulação paralela, mais restritiva do que a legislação nacional, com base apenas em compromissos privados firmados entre empresas concorrentes.
Para entender esse debate é necessária uma breve retrospectiva. Em meados da década de 2000, relatórios e imagens de satélite mostravam que parte do desmatamento na Amazônia era causado pela conversão de florestas em cultivo de soja. Diante da pressão internacional, alguns dos agentes privados mais relevantes da cadeia produtiva decidiram unir-se num pacto: não comprariam soja cultivada em áreas desmatadas após julho de 2008. Para tanto, criaram um sistema de monitoramento por satélite, auditorias independentes e listas negativas que bloqueavam produtores em desconformidade.
Essa iniciativa ajudou a dissociar a produção de soja da derrubada da floresta, sinalizou compromisso com padrões internacionais e protegeu reputações. Entretanto, do ponto de vista jurídico e da legitimidade política, sempre pairou a fragilidade: tratava-se de um acordo privado, sem previsão legal, impondo restrições adicionais às já existentes no Código Florestal.
Quase 20 anos depois, essa limitação cobrou seu preço. Em 2025, após representação da Câmara dos Deputados, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) abriu inquérito para investigar se a moratória configurava um cartel. O argumento é de que, ao se coordenarem para não adquirir soja de determinados produtores, as grandes empresas envolvidas poderiam estar praticando conduta anticompetitiva, em violação à Lei de Defesa da Concorrência.
O resultado foi a decisão pela suspensão de todo o arranjo construído. De um dia para o outro, o instrumento que havia moldado a relação entre soja e Amazônia por quase duas décadas foi colocado em xeque. E mais uma vez emergiu o problema central: não havia respaldo legal que o protegesse, tampouco uma alternativa regulatória formal que o substituísse.
A história da moratória e sua recente suspensão escancara um ciclo perverso. Quando há falhas na política ambiental e nos marcos legais, agentes privados criam soluções paralelas para responder a pressões econômicas. Essas soluções, por sua vez, permanecem frágeis, pois podem ser questionadas a qualquer momento por qualquer outro órgão ou entidade estatal. O resultado é a instabilidade crônica: um vaivém regulatório que mina a confiança de produtores, desorienta investidores e fragiliza a política ambiental.
O impasse da Moratória da Soja não deve ser lido apenas como uma disputa entre agronegócio e ambientalismo. Trata-se de um sintoma de um problema maior: a ausência de uma política ambiental e de um marco regulatório estável que una proteção ambiental, segurança jurídica e liberdade econômica. O resultado não poderia ser outro: quando a lei é omissa e a regulação é instável, a preservação ambiental se converte em improviso.
A insegurança jurídica não é apenas um entrave econômico. É, também, um dos motores da degradação ambiental. Sem regras claras, cada avanço é precário, cada pacto é instável e cada política é volátil. O desenvolvimento sustentável, no entanto, depende justamente de escolhas estruturadas, planejadas, que garantam previsibilidade a produtores, segurança a investidores e estabilidade às comunidades locais.
Preservar florestas ou recuperar áreas degradadas exige compromissos duradouros, mas esses se tornam inviáveis quando o ordenamento jurídico é incapaz de sustentar arranjos estáveis e coerentes ao longo do tempo.






