
A fama do repórter Kaíke Nanne antecedeu nosso primeiro encontro. No auge dos escândalos envolvendo os Collor de Mello, nos anos 1990, esse então jovem jornalista pernambucano, de Olinda, era uma das estrelas da maior revista do país e sempre tinha textos saborosos e com muita informação sobre o assunto. Os anos passaram, ele chefiou grandes núcleos e redações de revistas no país. Trabalhamos juntos na Ediouro, em 2015, e a qualidade de tudo o que ele fazia chamava a atenção.
Não fiquei nada surpresa quando li os originais de “Como dançar com os mortos”, obra que ele lançou em outubro. Sempre soube que Kaíke aproveitava parte de suas férias para visitar povos ancestrais de todos os continentes do Globo. Essas viagens, cercadas de um certo mistério, incluíam temporadas em comunidades que ele descreve como “à margem do tempo”, ou que vivem além das aflições da era moderna. Nos últimos 20 e tantos anos, Kaíke visitou mais de 50 países. Parte do que ele viu está nessa obra, que vai bem além de um relato de viagem: é um mergulho profundo nas cosmovisões de povos originários espalhados pelo globo. Em onze capítulos de texto jornalístico leve e acessível, Kaíke apresenta tradições de grupos étnicos que resistem à pressão do mundo globalizado. Arrisco dizer que ele vai além da precisão jornalística em alguns momentos ao permitir-se emocionar com vários de seus anfitriões.
Um dos méritos de “Como dançar com os mortos” é desmantelar a distinção rígida que o Ocidente impôs entre o mundo físico, o chamado mundo real, e o mundo dos espíritos. Para as 23 culturas retratadas na obra, o transcendente, as deidades, os antepassados e o intangível estão ativamente presentes no meio dos vivos. O livro traz em detalhes práticas cotidianas, rituais de passagem, e, principalmente, formas de lidar com a morte e a organização comunitária de cada povo visitado.
O título do livro se inspira no ritual dos Famadihana, que vivem em Madagascar. Ali, os nativos retiram os corpos dos familiares dos túmulos para dançar com eles, celebrando a vida em uma cerimônia festiva. Naquela região, estão descendentes de mais de 20 etnias, que em comum têm a língua malgaxe, de origem sul-asiática; o respeito aos ancestrais e a ideia de que a morte, momento em que abandonamos a forma corporal transitória para virarmos ancestral no mundo dos espíritos, é o evento mais importante desta existência.
Na leitura, viajamos do Ártico ao Deserto do Saara, da Amazônia ao Pacífico Sul, conhecendo histórias fascinantes que em alguma medida reproduzem passagens e personagens (como o grande criador e seu filho que vem viver entre os homens) das religiões mais populares do mundo moderno.
Talvez o que mais tenha me chamado a atenção foi a forma que povos amazônicos e africanos fazem para preservar a identidade cultural e a leveza do existir. Na Venezuela, por exemplo, os Pemon, que inspiraram o anti-herói Macunaíma de Mario de Andrade, centram sua visão de mundo na alegria, na arte da transformação e na liberdade. São inspirados pelo demiurgo de mesmo nome do nosso herói sem caráter, um ser incapaz de criar nada, mas que organiza a estrutura diante do caos. Os Akuntsú, etnia à beira do desaparecimento que vive em Rondônia, usam o humor, o acolhimento e o afeto aos animais para lidar com dores e traumas extremos. Da mesma forma, os pigmeus Batwa, originários do Congo e que sofreram discriminação histórica, ensinam que viver bem significa celebrar o corpo, o riso e os espíritos dançarinos.
A leitura de “Como dançar com os mortos” alimentou minha curiosidade sobre os mitos e suas origens. E me mostrou que talvez a cura para a aflição moderna não esteja na nova pílula ou fonte de energia limpa a serem descobertos. Mas em silenciar, acolher e compartilhar da alegria daqueles que vivem às margens do tempo.
Por Carolina Chagas – via O Globo





