Há algo de muito errado quando uma política pública de combate à pobreza prevê, no longo prazo, mais do que duplicar a quantidade de seus dependentes. O objetivo prioritário de programas de redução da desigualdade social é – ou deveria ser – diminuir a pobreza e estancar o avanço da vulnerabilidade. Por isso, é frustrante a projeção de que a distribuição do Benefício de Prestação Continuada (BPC) irá crescer 111% ao longo de 34 anos, passando de 6,7 milhões de assistidos em 2026 para 14,1 milhões em 2060.
Mais preocupante ainda é saber que a estimativa parte de cálculos do próprio governo, por meio do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), responsável pela gestão do benefício. O que faz crer que ou o programa foi mal concebido, ou é mal administrado, ou seu planejamento futuro está mal direcionado, sendo que uma hipótese não exclui as outras. Uma coisa é certa: um programa cujo orçamento previsto no período passa de R$ 133,4 bilhões para R$ 1,5 trilhão definitivamente não é sustentável.
Criado pela Constituição de 1988 e previsto na Lei Orgânica de Assistência Social (Loas), o BPC começou a ser distribuído em 1996, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Substituiu o Programa Renda Mensal Vitalícia, que garantia benefício previdenciário a idosos acima de 70 anos e a pessoas vulneráveis incapacitadas de forma permanente para o trabalho. Com o passar do tempo, o limite de idade baixou duas vezes, a primeira no ano eleitoral de 1998, para 67 anos, por medida provisória convertida em lei, e a segunda em 2003, o primeiro ano da gestão petista, para 65 anos, seguindo o Estatuto do Idoso.
O conceito de pessoa com deficiência com direito ao benefício também mudou e, a partir de 2009, passou a abranger dimensão social e subjetiva, avaliada por peritos do INSS. Independentemente de idade, pessoas pobres com deficiência física ou mental podem requerer o BPC, desde que atendidos critérios como o de rendimento familiar. Havia obrigação legal de revisão na lista de beneficiários de dois em dois anos, para verificar se estavam mantidas as condições que garantiam o direito. Decreto presidencial diz agora que o benefício será revisto periodicamente, sem determinar prazos.
Pode-se deduzir que o principal problema em relação ao BPC – um benefício social justificado e com fundamento – é confundi-lo com aposentadoria vitalícia, um equívoco decerto causado pela indexação do valor do auxílio ao salário mínimo, que também rege os benefícios previdenciários. O direito à aposentadoria é concedido às pessoas com mais de 62 anos (mulheres) ou 65 anos (homens) que contribuíram para o Regime Geral de Previdência Social por, ao menos, 15 anos. Há ainda aposentadoria por tempo de contribuição (pelo menos três décadas), por invalidez e por deficiência.
Mas BPC não é aposentadoria, é um auxílio assistencial. Para recebê-lo não é necessário ter contribuído, e aí está uma questão crucial que exige uma análise realista por parte do governo e da sociedade. Ora, se uma pessoa contribui para a Previdência pelo piso ao longo de toda a vida laboral e ao se aposentar, aos 65 anos de idade, tem direito a um salário mínimo mensal, o mesmo valor de um beneficiário do BPC da mesma idade que nunca contribuiu, algo nessa conta não está certo.
O crescimento explosivo do BPC está, por óbvio, ligado a incoerências como essa. Se a “aposentadoria mínima” está garantida, mais vale atuar na informalidade, sem contribuir. Como avaliou Daniel Duque, pesquisador do FGV Ibre, a indexação do BPC ao mínimo e critérios questionáveis do programa, como o que permite a concessão de mais de um BPC por família, mostram que falta foco à política pública e explicam a enorme judicialização que tem ocorrido nos pedidos do benefício.
Se frequentemente a desindexação do BPC do salário mínimo aparece em planos de corte de gastos do governo, é por pura racionalidade. Se insistentemente o presidente Lula se nega a autorizar a desvinculação, é por puro populismo.
Por Notas & Informações – O Globo