
Vivemos numa era que celebra o individualismo. A noção de que “o meu corpo me pertence e as minhas escolhas são problema apenas meu” é sedutora, mas profundamente ilusória, especialmente quando o assunto é saúde pública. A verdade, dura e crua, é que o custo de uma vida de maus hábitos — seja o tabagismo, a obesidade severa ou o sedentarismo extremo — raramente fica confinado ao indivíduo. Essa conta, invariavelmente, é rateada por toda a sociedade, seja através do bolso, da disponibilidade de leitos ou da produtividade nacional.
No âmbito público, a situação é mais visível. O Sistema Único de Saúde (SUS), um pilar da nossa sociedade, é financiado pelo pagamento de impostos de todos nós. Quando uma pessoa desenvolve uma doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) após décadas fumando, ou um diabetes tipo 2 e problemas cardiovasculares ligados à obesidade, o tratamento é longo, complexo e caríssimo. São consultas especializadas, medicamentos de uso contínuo, internações recorrentes e, em estágios avançados, procedimentos de alta complexidade como cirurgias cardíacas ou diálise. Cada recurso direcionado para essas doenças, em grande parte evitáveis, é um recurso que deixa de estar disponível para outras emergências, como um acidentado, um paciente com câncer não relacionado ao estilo de vida ou uma criança com uma doença rara. A fila do SUS não é uma abstração; ela é alongada, minuto a minuto, pelo peso das doenças crônicas.
No entanto, é um equívoco achar que quem possui plano de saúde escapa dessa dinâmica. No sistema privado, a lógica é a do mutualismo. As seguradoras e operadoras calculam seus riscos com base no perfil coletivo de seus usuários. Quando os custos com um grupo, que inclui um número significativo de pessoas com hábitos de alto risco, disparam, a resposta é inevitável: reajustes anuais abusivos para todos os beneficiários. O fumante ou a pessoa com obesidade mórbida no pool de clientes não paga sozinho pela sua terapia intensiva; ele ajuda a inflar a mensalidade de milhares de outras famílias que, talvez, se alimentem bem e façam exercícios regularmente. É uma solidariedade involuntária e onerosa.
O custo, porém, vai muito além dos sistemas de saúde. Ele se esparrama pela economia. Funcionários que faltam frequentemente por problemas de saúde relacionados ao seu estilo de vida geram perda de produtividade para as empresas, que repassam esse preço aos consumidores. Aposentadorias por invalidez, custeadas pelo INSS, são frequentemente concedidas devido a condições agravadas pela falta de cuidado consigo mesmo. Isso sobrecarrega o regime previdenciário, criando um fardo fiscal para as gerações presentes e futuras.
Argumentar isso não é promover a “caça às bruxas” ou defender um “estado policial” que dite hábitos. Trata-se, sim, de um chamado à responsabilidade e à conscientização. Ninguém é perfeitamente saudável, e uma sociedade civilizada deve acolher e tratar todos os seus cidadãos, independentemente de suas escolhas. Mas precisamos romper com a falácia de que o corpo é uma ilha. A decisão de ignorar os avisos, de continuar fumando ou de negligenciar completamente a alimentação e o movimento, tem um endereço: a coletividade.
Cuidar de si mesmo, portanto, deixa de ser um mero ato de vaidade ou interesse individual. É um ato de solidariedade genuína. É uma contribuição silenciosa para um sistema de saúde menos sobrecarregado, para planos de saúde mais acessíveis e para uma sociedade mais produtiva. A conta do descuido alheio não é uma ficção; é uma fatura que chega todo mês, discretamente embutida nos nossos impostos e nas nossas mensalidades. E, quem paga a conta, somos nós mesmos.
Por Marcio Atalla – via O Globo





