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A judoca que desafiou ditadura, ‘profetizou’ sucesso de Bia Souza e quer redefinir a velhice

A judoca Bia Souza, medalhista de ouro nos Jogos Olímpicos de Paris-2024, vivia o primeiro ano como atleta do Pinheiros, em 2015, quando conheceu a veterana Soraia André César durante um treinamento. Ali, descobriu que estava em frente a uma das mulheres que inaugurou a participação do Brasil no judô feminino em Olimpíadas e ouviu sobre o tempo em que a ditadura proibia às mulheres a prática de artes marciais, contexto vivido por Soraia. Ao final do treino, escutou palavras que nunca esqueceu.

“Ela virou para mim e falou que Deus tinha uma obra muito especial para fazer na minha vida, que eu não podia desistir, que não seria fácil, mas para eu acreditar. Ela falou isso para mim de uma forma, nossa, olhando nos meus olhos. Acreditei tão forte quando ela falou, e carrego isso até hoje comigo. Ela se tornou uma mensageira para mim, uma pessoa muito especial”, contou Bia. “Sou grata por todo esforço dela, por tudo que ela passou, por todas as lutas que ela encarou e venceu. Se não fosse por ela, eu não poderia estar aqui hoje”, completa.

A campeã olímpica fez o mesmo relato à própria Soraia, que não lembra de muitos detalhes daquele primeiro encontro, mas se orgulha de ter o reconhecimento das gerações para as quais abriu portas. “Eu não falei para encher a bola, eu devo ter visto mesmo o treino dela e o potencial. É muito bacana, porque a gente vive em uma cultura em que o passado é esquecido.”

Hoje com 60 anos, a atleta pioneira – como mulher negra praticante de uma arte marcial que hoje tem outras mulheres negras como protagonistas no Brasil, mas que nem sempre foi assim – ainda está envolvida com o esporte. Ensina judô a crianças em um centro educacional no Cata Preta, bairro na periferia de Santo André, ao mesmo tempo em que se dedica a pesquisas na área da psicologia, uma de suas formações acadêmicas, e sobre cultura afro-brasileira.

No momento, se prepara para defender, na Universidade Federal do ABC (UFABC), uma tese de mestrado sobre a terceira idade de atletas olímpicos negros, cujos estudos são focados em Wanda dos Santos, estrela do atletismo nas décadas de 1950 e 1960, e nos boxeadores Servílio de Oliveira, medalhista olímpico de bronze em 1968, e Chiquinho de Jesus.

Soraia também já deu aulas de judô para idosos, projeto que pretende reativar e que mostra o seu interesse por temas ligados ao envelhecimento. O processo de esquecimento ao qual muitos atletas são submetidos é um desses pontos, por isso a sensei valoriza posturas como a de Bia.

“A fala da Bia expressa muito isso. Ela reconhece, se a gente não tivesse feito lá atrás, ela não estaria lá hoje. O caminho é coletivo, mas ainda falta, não só no esporte, mas uma sociedade que valorize pessoas. O Brasil é um país que está envelhecendo, vai ter mais velhos do que crianças, não vai demorar muito. Só que esse passado não é lembrado”, diz.

A gente não vive em uma cultura em que o velho tem um lugar na sociedade. Ele tem um não-lugar, diferente das sociedades africanas em que ter o velho na casa – eu falo velho, e não se assuste, porque é o termo exato, correto de falar- é uma questão de honra. Por que ele vai passar o conhecimento, a tradição oral. O teórico, estudioso de África, Hampaté Bah, fala que quando morre um idoso, uma biblioteca inteira é incendiada. – Soraia André, judoca e psicóloga

A hoje sensei de 60 anos abriu os caminhos que culminaram na medalha de bronze de Ketleyn Quadros em Pequim-2008, o primeiro pódio do Brasil na história do judô feminino olímpico. Depois, pódios também vieram para Sarah Menezes (um ouro), Mayra Aguiar (três bronzes), Rafaela Silva (um ouro e três bronzes) e, enfim, Bia Souza (um ouro individual e um bronze por equipes) e Larissa Pimenta (um bronze individual e um bronze por equipes).

Boa parte dessas medalhas vieram de mulheres negras, que, embora de formas diferentes, chegaram a enfrentar situações semelhantes às que Soraia viveu décadas atrás, em um tempo em que o racismo era menos debatido.

“Elas vivem coisas muito parecidas. Eu costumo dizer e percebo que o racismo se aperfeiçoa. É uma tecnologia que vai se aperfeiçoando. Então, ele é estrutural, ele continua. Elas passam, sim. A Rafaela, em 2012 (Jogos de Londres), foi alvo, foi xingada. ‘O que uma menina negra da comunidade queria, foi lá para Londres para perder?’ Elas passam sim. Acho que, enquanto a sociedade não mudar – a gente vive em uma sociedade desigual, uma sociedade racista, homofóbica, enfim, machista -, essas nuances também vão acontecer no esporte. O esporte é o micro no macro. É um reflexo da sociedade.”

Bia Souza, Soraia André, Rafaela Silva e Ketleyn Quadros, em encontro de kondanshas. Foto: Divulgação/CBJ

Do samba à luta

Soraia não se intimidou com a passagem do tempo ao longo dos anos, tanto que decidiu se formar em psicologia quando tinha 45 anos. Também recorreu ao passado quando sentiu ser necessário, a exemplo da reconexão que buscou com o samba, elemento essencial de sua trajetória.

Nascida e criada na Casa Verde, bairro da zona norte de São Paulo, é filha de Dona Neide André, morta em 2014, uma das matriarcas do samba paulistano. Neide integrou a ala das baianas da Unidos do Peruche por duas décadas, não à toa sua imagem está pintada no muro da escola de samba. Participou, ainda, da fundação do Império da Casa Verde e foi uma das Tias Baianas Paulistas.

Israel Laércio André, pai de Soraia, tocou surdo de primeira no Peruche e afirmava que o trecho “Laércio, traz o agogô” do samba Morro da Casa Verde, de Adoniran Barbosa, foi escrito em sua homenagem.

Foi Laércio quem levou Soraia André ao mundo do judô, um pouco por acaso. Quando menina, ela já era muito conectada à música, dos sambas de Martinho da Vila, Originais do Samba e Bezerra da Silva à MPB de Elis Regina, Gal Costa e Wanderléa. Daí veio o gosto por poesia e pelas rimas, o que também a distraia da realidade difícil em que vivia.

“A gente estava entregue a uma sorte que não tinha perspectiva de vida, como em qualquer comunidade. Nós, crianças, ficávamos na rua. Não éramos crianças de rua, mas éramos meninas na rua. Faltava comida, bebida, afeto. Minha mãe era empregada doméstica e saia. Nós, eu e minha irmã mais velha, saiamos, de vez em quando, para pedir coisas na rua, e as pessoas nos davam o que sobrava da vida delas. Eu era uma criança como outra qualquer, queria brinquedos de verdade. Não queria boneca sem cabelo ou carrinhos sem roda. Não queria esses brinquedos e comecei a brinca com minha imaginação”, conta.

Era rimando que pedia presentes ao pai. No dia em que quis pedir um gravador, também disse que queria fazer judô, apenas para rimar, mas foi a essa parte que Laércio se apegou, até porque ele gostava das artes marciais, especialmente o boxe, esporte que chegou a praticar treinado por Ralph Zumbano, tio de Éder Jofre, também morador da Casa Verde.

Então, começou a busca por uma academia de judô em que Soraia pudesse treinar. Só havia um detalhe: por lei, ela não podia. O ano era 1976, o Brasil era governado por Ernesto Geisel e ainda estava em vigor o artigo 54 do decreto-lei 3.199 de 1941, estabelecido na era Vargas para proibir as mulheres de praticarem esportes socialmente considerados masculinos, como o futebol e as artes marciais. Soraia não tinha interesse real no judô, pois achava violento qualquer tipo de luta, mas não queria contrariar o pai.

“Um dia, ele achou a Associação de Judô Imirim, próximo à Casa Verde. Foi me matricular e a primeira negativa foi do professor. Ele falou que não, que não tinha meninas, que não podia. E a gente olhava ali aquele dojo, o local de prática do judô, com várias meninas. Ele falava: ‘não tem’. E a gente vendo que tinha. Até que meu pai falou: como não tem? E o professor: essa é a filha do Akamine, essa é a filha do Gakiya, todos os sobrenomes orientais. E meu pai: e essa é minha filha, tem algum problema?.”

A abordagem funcionou, e a menina pôde se juntar às demais alunas, embora o cenário fosse desconfortável por ser a única negra no meio de descendentes de japoneses.

“Começou aquela brincadeira, que hoje chamam de bullying. Eu tinha um black power enorme. Elas ficavam achando que meu cabelo dava choque, perguntavam se saia bicho de dentro. Como qualquer menina, eu chegava em casa chorando. Minha mãe perguntava o que estava acontecendo, e aí resolveu alisar meu cabelo. Pegava um pente, que ia no fogo. Fiquei com o cabelo lisinho, e aí veio outra brincadeira. Elas me chamavam de japonegra. Aí, eu falo que se me derem um limão eu faço uma limonada. Japonegra é o título do meu livro.”

Sem poder participar de campeonatos, Soraia e as demais meninas acompanhavam os meninos em torneios e tinham funções como levar comida, estender a toalha, de servir os judocas, recolher o lixo e aplaudir quando eles conseguiam medalha. Em plena ditadura, a então jovem judoca não tinha noção dos riscos que corria ao praticar o esporte.

Eu não tinha noção que eu poderia ser presa ou sumirem comigo. Eu não tinha a mínima noção, eu estava ali no dojo, quando eu me tornei a ‘japonegra’ e fui aceita naquele espaço. Era como se eu adentrasse outro mundo. Saia da comunidade e ia para lá. Ficava horas treinando, um tempão brincando de ser criança. Eu não tinha a mínima ideia. Depois, com o passar dos anos, caiu a ficha: ‘ih, eu fazia judô na época da ditadura, era proibido’ – Soraia André, judoca e psicóloga

O decreto que restringia práticas esportivas femininas caiu em 1979. Quase 10 anos depois, Soraia André viajava para Seul, onde disputaria a Olimpíada de 1988, um anos após ser campeã dos Jogos Pan-Americanos de 1987 – também foi bronze em 1983 e 1991.

Na Coreia do Sul, o judô feminino foi incluído como demonstração aos Jogos Olímpicos, em edição que teve Aurélio Miguel como vencedor da inédita medalha de ouro para o Brasil na disputa masculina, que já existia desde 1964. Soraia teve a companhia da compatriota Mônica Angelucci e terminou na quinta colocação. A imagem que mais guarda desse período é de quando voltou ao Brasil e reencontrou a família.

“Quando voltei de Seul, eu fui quinta colocada e quinta no Brasil não é nada. Segundo já não é nada, quem dirá quinto. Voltando do Aeroporto, o pessoal correndo para o Aurélio Miguel, que foi campeão naquele mesmo ano, e minha família com uma cartolina escrito: parabéns pelo seu quinto lugar. Então, acho que honro muito minha família meus pais, por serem quem são. Estarem lá com uma cartolina, não era faixa, não era nada. Só expressar minha gratidão”, relembra.

Depois de Seul, esteve também nos Jogos de Barcelona, em 1992, ano em que viveu desentendimentos com a Confederação Brasileira de Judô (CBJ). O motivo era a cobrança de uma verba à qual as judocas tinham direito. Ao confrontar a entidade, viu a CBJ estabelecer uma regra que proibia mulheres de 28 anos, a idade que tinha na época, de competirem.

“Falaram que minha cabeça ia rolar, eu até pensei que estava preparando alguém para competir, porque eu nunca tive problema em perder no tatame, mas não foi desse jeito. Eu chego em casa e eles me mandam um decreto: neste ano, a CBJ não permitirá mais mulheres com 28 anos competirem. A coisa foi tão certeira que podiam fazer 27, 25. Foi muito específico. Para mim, tiraram meu alicerce, eu vivia disso, era judoca 24 horas por dia”, conta.

Em protesto, pintou o judogi, como é chamado o uniforme dos judocas, de preto e foi à arquibancada de uma competição, ato que rendeu até matéria na Globo. “Foi muito difícil pintar. Ali, quando eu estava tingindo de preto, ‘minha carreira está acabando, me enterraram viva, estou vestindo um luto’. E fui para competição, fiquei fora, fiquei na arquibancada, até que veio uma emissora grande de TV, fez a matéria, aí piorou. ‘Agora, você vestiu o judogui preto, você feriu a imagem do judô, porque a suavidade, o caminho, a solidariedade…’ Eu sai desse lugar desse jeito.”

Da luta ao samba

Toda a situação gerou impactos psicológicos em Soraia André, mas ela se reconstruiu e se redescobriu diversas vezes ao longo dos anos. Também formada em Educação Física e pós-graduada em Psicopedagogia, Letras, Direito Educacional, Psicologia do Esporte e Psicodrama, construiu uma rica vida acadêmica e usou as próprias experiências de vida para se debruçar sobre temas sociais importantes.

Além disso, a judoca buscou se reconectar com diversos aspectos de sua existência. Em 2019, quando já havia tido a oportunidade conhecer mais de 20 países competindo, viajou pela primeira vez ao continente africano, convidada para ir à Angola por um professor de judô

“No meu imaginário, eu tinha que levar judogui, comida, bebida. Na minha cabeça era assim: vou para um país pobre, então tenho que ser a rica salvadora. O Fernando (professor) falou: a gente não precisa de nada aqui não, as roupas vão rasgar, as traças vão comer. Nós precisamos das suas palavras. Quando ele falou isso, entrou um desejo no coração e falei: vou”, lembra.

“Aprendi muito lá, sem contar que para mim foi uma reconexão. A pessoa negra em diáspora acaba não tendo história, a gente não sabe a nossa história. Há tantos anos, vieram, chamam de escravos, a gente não tem memória, fica sempre nesse jeito de não existir. Fui para lá, tive essa reconexão, comecei a pesquisar, fiz algumas leituras, com a psicologia também comecei a ver as relações, como se dá essas relações étnico raciais, comecei a me aprofundar e hoje estou aí pesquisando, me pesquisando.”

O movimento mais recente de Soraia também é de reconexão, em direção ao samba, ritmo que permeou as relações de sua família desde sempre. Ela está buscando apoio para tirar do papel o projeto “Sankofa: da Luta ao Samba”, um show em prosa que mescla contação de história e apresentação musical, usando como enredo sua própria história de vida.

“Me tiraram do samba, mas não tiraram o samba de mim. Quando eu fui para o esporte, para o judô era algo assim: você não pode dançar samba, você não pode ser quem você é com suas origens, suas tradições, sua música. Então, eu cresci ouvindo samba, desfilando em escola de samba. Mas quando eu comecei a ir para o judô é como se eu tivesse me afastado de tudo isso”, diz.

“A minha mãe desfilou até antes de falecer, desfilava muito. Eu me afastei do samba, mas comecei depois a minha pesquisa e volto para o samba. Porque eu falei: ‘calma, eu só consegui fazer os golpes do judô e me adaptar por causa da ginga, porque eu sei gingar, sei dançar, sei cantar samba’. Me ajudou muito. Fazendo uma volta às minhas origens, dançando, cantando, fazendo curso de dança afro, para poder voltar a ser quem eu sempre fui.”

Fonte: Estadão