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A demência está roubando suas memórias. Mas não sua voz

Mike Yates e sua esposa, Drema Yates, participam do ensaio do coral Foto: Matt McClain/The Washington Post

Aos 86 anos, Drema entra cambaleante no santuário da Igreja dos Irmãos de Manassas, segurando firmemente o braço do marido, Mike Yates. Ela depende de Mike, oito anos mais novo, para se manter de pé a cada passo vacilante.

O casal se acomoda na ponta de um banco com almofadas vermelhas, como fazem a cada duas terças-feiras. Uma dúzia de pessoas conversa em voz baixa, esperando o início do ensaio do Forgetful Friends Chorus. Não há audições, porque as únicas pessoas autorizadas a participar são cantores que têm demência e seus cuidadores.

“Cantar me aproxima de Deus”, diz Drema. “Deus está no meu mundo. Sem Deus eu não saberia de nada.”

Drema não se lembra do que comeu no café da manhã, mas sabe que é casada com Mike há 51 anos. Ele a lembra de que preparou ovos, torradas e café. Drema afirma, com naturalidade, que tem uma ótima memória.

Ela foi diagnosticada com demência há quatro anos. “Tentei dizer isso a ela algumas vezes. Ela fica muito na defensiva e começa a discutir”, conta Mike, de 78 anos. “Ela se recusa a aceitar que tem demência.”

Por isso, ele evita tocar no assunto.

O coral ensaia o hino nacional americano, The Star-Spangled Banner, para abrir o Walk to End Alzheimer’s, um evento anual de arrecadação de fundos promovido pela Associação de Alzheimer. A regente Connie Young, que fundou o grupo em 2016, diz que hoje há mais gente do que o normal.

O grupo se reúne duas vezes por mês para ensaiar e faz apresentações em casas de repouso da região. Antes da pandemia de coronavírus, em 2020, o coral se apresentava a cada poucos meses. Agora, só se apresenta ocasionalmente.

Recentemente, cantaram no funeral de Lisa Bosley, uma integrante que morreu em maio. O marido dela, Dave Bosley, ainda canta com o Forgetful Friends. Ele diz que quer se sentir conectado a Lisa: “Fomos casados por 56 anos, 11 meses e 19 dias.”

Cerca de um ano atrás, Bosley convidou Drema e Mike para participar do coral. Eles nunca mais deixaram de ir.

Mike é o principal apoio de Drema. É o segundo casamento de ambos. Cada um tem filhos, mas eles vivem sozinhos. Mike prepara o café da manhã de Drema, a leva para passear e tenta fazê-la feliz. A vida deles é tudo o que ele tem — mas está escapando por entre os dedos.

“Tivemos uma vida muito boa juntos. Ver tudo isso desaparecer e saber que não há nada que se possa fazer…”, diz Mike. “Essa é a parte mais difícil, saber que o fim está chegando. E eu consigo ver que não está tão longe quanto costumava estar.”

Especialistas explicam que a memória processual, um tipo de memória de longo prazo, é o que permite que pessoas com demência se lembrem de letras antigas — mesmo quando já esqueceram o nome de pessoas queridas, como preencher cheques ou cuidar de si mesmas.

Cantar torna a memória de Drema firme e inabalável. No ensaio, as pessoas seguram pastas com as letras das músicas. Embora Drema também pegue uma, ela não precisa dela. “Ela não sabe que hoje é terça-feira”, comenta Mike, “mas consegue cantar músicas dos anos 1960.”

Na manhã do evento beneficente, faz 12°C. As pessoas apertam os casacos contra o corpo enquanto o ar frio da manhã morde a pele.

Mike convence Drema a usar uma cadeira de rodas, que ele empurra até o pavilhão em uma rua no centro de Manassas. Ela enfia as mãos sob o cobertor que cobre seu colo.

“Devíamos ter pedido um pouquinho de sol para o homem lá de cima”, diz ela.

Drema não se lembra de onde veio o cobertor artesanal que a cobre. Mike a lembra de que foi um presente de uma amiga. Drema não se lembra do motivo de estarem no pavilhão. Mike a lembra de que eles vão cantar.

Durante um minuto e meio, Drema canta. Ela sorri. Não parece nervosa, nem confusa, nem perdida.

Depois da apresentação, o vice-presidente local da Associação de Alzheimer, Michael Farrell, sobe ao palco e anuncia que o evento arrecadou 203 mil dólares. Ele pede que as pessoas “cavem um pouco mais fundo” e doem mais dinheiro para ajudar a acabar com a doença.

Drema diz que sente pena das pessoas que têm Alzheimer: “Nunca sabemos quem vai ter. O médico colocou isso na minha lista de coisas que eu poderia ter por ser velha. Mas isso não aconteceu.”

Ela olha para Mike e pergunta o que estão fazendo. Ele aperta o nariz dela; ela ri. Ele a olha com ternura. Depois, a empurra de volta até o carro. Ela pode não se lembrar por muito tempo, mas Drema diz que se divertiu muito.

Fonte: Estadão