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O Alzheimer antes da memória falhar

Corpo dá sinais do processo biológico que leva ao Alzheimer — Foto: Freepik

Durante décadas, diagnosticar a doença de Alzheimer foi um desafio quase artesanal. Dependia de entrevistas clínicas, testes de memória e da exclusão de outras causas de demência. A confirmação definitiva só ocorria após a morte, com a análise microscópica do cérebro. Agora, a medicina vive uma virada histórica: exames de sangue são capazes de identificar alterações biológicas da doença muitos anos antes dos primeiros sintomas.

O Alzheimer é responsável por 60 a 70% dos casos de demência, afetando milhões de pessoas no mundo e cerca de 1,5 milhão de brasileiros. Com o envelhecimento populacional, prevê-se que o número de casos triplique até 2050, tornando o diagnóstico precoce não apenas um avanço científico, mas uma necessidade de saúde pública. Cada novo caso impacta famílias, desafia cuidadores e pressiona os sistemas de saúde. Identificar a doença mais cedo permite planejar melhor o cuidado e preservar a autonomia por mais tempo.

Os novos testes não detectam o Alzheimer diretamente, mas rastreiam alterações químicas associadas ao processo neurodegenerativo. Entre elas estão as proteínas beta-amiloide e tau fosforilada, que, em níveis anormais, indicam o início do processo que leva à perda de memória e de funções cognitivas.

Há diferentes tipos de testes em desenvolvimento. O mais consolidado mede a razão entre as proteínas beta-amiloide 42 e 40, que indica acúmulo anormal de placas no cérebro. Outros avaliam a proteína tau fosforilada, especialmente as variantes p-tau217 e p-tau181, associadas à degeneração neuronal. Há ainda o exame de GFAP (proteína ácida fibrilar glial), marcador de inflamação cerebral precoce. Em combinação, esses testes têm mostrado acurácia superior a 85%, comparável à do PET cerebral, porém com custo muito menor e coleta simples de sangue periférico.

Outro avanço promissor é a inclusão da genotipagem do gene APOE, especialmente a variante épsilon 4, que aumenta de duas a três vezes o risco de desenvolver Alzheimer. A presença do APOE épsilon 4 não determina o destino de um indivíduo, mas indica maior vulnerabilidade, especialmente quando associada a fatores ambientais como sedentarismo, hipertensão e dieta inadequada.

Em países como Estados Unidos e Suécia, esses exames já são usados como ferramentas complementares. Representam um avanço promissor, pois reduzem a necessidade de procedimentos invasivos e caros, como a punção lombar ou o PET com amiloide, tornando o diagnóstico mais acessível e menos traumático. No Brasil, ainda estão em fase experimental e fora da prática clínica.

Mesmo com o avanço da tecnologia, a prudência continua essencial. Um resultado positivo não significa que a pessoa desenvolverá a doença, já que muitos apresentam alterações sem manifestar sintomas. O exame não substitui a avaliação médica e deve ser interpretado por especialistas. O uso indiscriminado pode gerar ansiedade, interpretações equivocadas e até estigmatização de pessoas saudáveis.

Os testes sanguíneos inauguram uma nova forma de pensar o Alzheimer. Eles deslocam a medicina do campo reativo para o preventivo, ao permitir a detecção precoce das alterações biológicas. Essa antecipação abre caminho para intervenções mais precoces, controle de fatores de risco como hipertensão, diabetes e sedentarismo, incentivo a hábitos que fortalecem o cérebro, como atividade física, sono adequado e vida social ativa.

Para que essa revolução científica se traduza em benefício real, o Brasil precisa se preparar: investir em capacitação profissional, infraestrutura laboratorial, protocolos clínicos e regulação ética que assegurem equidade de acesso.

A ciência está abrindo as portas para enxergar o Alzheimer antes que ele se manifeste. O desafio, porém, ainda é transformar conhecimento em cuidado. Informação é uma forma de proteger o cérebro, a memória e a dignidade de envelhecer com lucidez.

Fonte: O Globo