A nova atualização do WhatsApp e os riscos do consumo fácil
O WhatsApp deixou de ser apenas um aplicativo de troca de mensagens para se tornar, cada vez mais, uma plataforma de negócios e consumo. Com a nova atualização, o app passou a permitir a criação de canais, onde empresas, influenciadores e marcas podem divulgar conteúdo em massa, incluindo anúncios pagos e links diretos para vendas. Isso significa que o consumidor passa a ser impactado por ofertas comerciais no mesmo ambiente em que conversa com a família, fala com o chefe ou recebe recados da escola do filho.
Essa mudança altera profundamente a forma como as pessoas consomem. A propaganda, que antes ficava restrita a sites, redes sociais ou mensagens patrocinadas, agora aparece no celular como uma notificação comum. Isso aumenta o risco do consumo por impulso, já que o conteúdo chega de maneira direta e informal, muitas vezes sem que a pessoa esteja preparada para tomar uma decisão financeira.
O problema se agrava ainda mais no Brasil, onde a educação financeira é falha ou praticamente inexistente para a maior parte da população. Muita gente não sabe identificar quando está diante de uma proposta perigosa, não entende como funcionam os juros, nem percebe que está se endividando ao aceitar “uma parcela que cabe no bolso”. Ao ver uma oferta de crédito, renegociação ou empréstimo em um canal do WhatsApp, a tendência é confiar, afinal, o aplicativo é usado todos os dias e transmite uma falsa sensação de segurança.
A atualização, embora tenha utilidade para o comércio, precisa ser vista com cautela. O WhatsApp virou vitrine de consumo dentro da vida cotidiana. Se não houver orientação, regulação e responsabilidade por parte das empresas que usam a ferramenta, essa facilidade pode se transformar em armadilha, especialmente para quem já vive no limite financeiro.
O que é superendividamento
Superendividamento acontece quando a pessoa, mesmo querendo pagar suas dívidas, não consegue fazer isso sem deixar de lado o que é essencial para viver com dignidade. Estamos falando de situações em que o salário ou a aposentadoria não dão conta nem de pagar o básico, como comida, aluguel, transporte, remédios e contas de casa. Nesses casos, não é que a pessoa está inadimplente por descuido, ela está sufocada por dívidas e sem saída. A Lei nº 14.181/2021 foi criada justamente para reconhecer esse cenário e proteger o consumidor superendividado, buscando evitar que ele seja tratado apenas como alguém que não honra compromissos.
O site meutudo.com.br, especializado em educação financeira, explica que superendividado não é quem tem dívida em si, mas quem não tem mais como reorganizar a vida financeira sem cortar o que é essencial. Não se trata do valor da dívida, mas da incapacidade de pagá-la sem abrir mão da própria sobrevivência.
Na Revista FT, juristas como Soares Filho e Amoedo reforçam que o conceito de superendividamento está ligado à dignidade da pessoa humana, prevista na Constituição. Para eles, a nova lei serve para equilibrar a relação entre quem toma crédito e quem oferece, exigindo mais responsabilidade dos bancos e financeiras, que agora devem verificar se a pessoa realmente pode assumir aquela dívida antes de aprovar o contrato.
A revista Consumidor Moderno, que trata das relações de consumo, alerta que o superendividamento cresce com o excesso de crédito fácil e a propaganda apelativa. Muitas vezes, a pessoa é levada a pegar empréstimos sem entender direito as condições. Isso se agrava pela falta de educação financeira, o que deixa o consumidor ainda mais vulnerável.
Superendividamento não é falta de caráter nem irresponsabilidade. É resultado de um sistema que empurra o consumo e não prepara as pessoas para lidar com o dinheiro. Por isso, a lei busca proteger o consumidor, garantir o mínimo necessário para que ele possa viver e, ao mesmo tempo, dar meios para negociar suas dívidas com dignidade.
A Lei 14.181/2021 e o direito ao mínimo existencial
A Lei nº 14.181, sancionada em julho de 2021, trouxe mudanças importantes no Código de Defesa do Consumidor. Pela primeira vez, o superendividamento passou a ser tratado com a seriedade que merece. A norma reconhece que o excesso de dívidas, quando compromete a sobrevivência do consumidor, precisa de resposta legal, e não apenas cobranças e mais juros.
Essa lei exige que bancos, financeiras e empresas que oferecem crédito sejam mais responsáveis no momento de firmar um contrato. A partir dela, passou a ser obrigatória a transparência total nas informações do contrato, ou seja, o consumidor tem o direito de saber exatamente quanto está pagando de juros, qual é o custo total da dívida e quais são os riscos do contrato que está assinando.
Outro ponto fundamental da nova lei é a avaliação da capacidade de pagamento do consumidor. Isso significa que quem oferece o crédito tem a obrigação de verificar se a pessoa tem condições reais de assumir aquela dívida. Não se pode mais empurrar empréstimo para alguém que já está com a renda toda comprometida. Essa prática era comum antes da nova legislação e acabou levando muitas pessoas ao colapso financeiro.
Um dos principais objetivos da norma é garantir o chamado mínimo existencial, aquilo que a pessoa precisa para viver com dignidade, como alimentação, moradia, remédios e transporte. A ideia é: se a dívida está impedindo o consumidor de atender suas necessidades básicas, o Judiciário pode ajudar a organizar os pagamentos de forma que ele continue vivendo com o essencial garantido.
Educação, proteção e responsabilidade
Vivemos um tempo em que o consumo e o crédito invadiram todos os espaços, inclusive os mais íntimos. A nova atualização do WhatsApp, que passou a permitir a criação de canais para veiculação de conteúdo pago e anúncios direcionados, é um marco dessa transformação. A plataforma, antes usada quase exclusivamente para conversas pessoais e profissionais, agora se tornou também um espaço de propaganda direta, onde instituições financeiras, varejistas e influenciadores têm acesso irrestrito ao consumidor.
Esses canais, por funcionarem dentro de um aplicativo confiável e de uso diário, tornam a propaganda mais persuasiva. Basta um clique para que o consumidor seja levado a uma proposta de empréstimo, renegociação ou suposta “solução rápida para dívidas”. Em um país onde quase 80% das famílias estão endividadas, segundo dados da CNC, e onde a maioria da população não teve educação financeira básica, esse tipo de abordagem pode ser altamente perigoso.
A Lei nº 14.181/2021 foi um avanço importante, porque trouxe um novo olhar sobre o consumidor endividado. Ela reconhece que há um limite entre o direito ao crédito e o abuso na sua concessão. Estabelece o dever de transparência, a obrigação de avaliar a capacidade de pagamento e a proteção ao mínimo existencial. Mas o cenário mudou: o crédito agora chega por notificações, stories e canais de conteúdo, e a legislação ainda não conseguiu acompanhar a velocidade dessa nova realidade.
Por isso, é urgente que o Poder Público e os órgãos de defesa do consumidor estejam atentos a essas atualizações tecnológicas. O WhatsApp, com seus canais e anúncios, se transformou numa vitrine que entra direto no bolso do consumidor, sem pedir licença. Se não houver regras claras, fiscalização e políticas de orientação, esse modelo só vai aprofundar o ciclo do superendividamento.
É preciso garantir que a tecnologia sirva ao bem-estar das pessoas, e não que explore sua vulnerabilidade. E isso só será possível com informação de qualidade, fiscalização firme e educação financeira que chegue a todos. Porque o consumidor não pode ser deixado sozinho diante de um sistema que lucra com o seu desespero.

Membro da ABA – Comissão Nacional de Direito Bancário.