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As redes sociais devem ser responsabilizadas por posts de usuários? NÃO

O Marco Civil da Internet, editado em 2014, definiu princípios para o desenvolvimento e uso sustentado e seguro das redes, com vistas a assegurar direitos humanos, liberdade de expressão, proteção de dados pessoais, livre iniciativa, entre outros direitos fundamentais.

A lei traz regime de responsabilidade equilibrado sobre duas regras: uma para a hipótese de “responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei”, e outra para as hipóteses de danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. Neste caso, estabelece que provedores de conexão nunca seriam responsabilizados e que os provedores de aplicação só responderiam se, recebendo ordem judicial para remoção, resistissem em cumpri-la.

A exceção a essa regra incide nos casos de violação da intimidade, de cenas de nudez e atos sexuais, quando, mediante notificação extrajudicial, a plataforma deixasse de derrubar o conteúdo.

Ocorre que a regra de responsabilidade das plataformas por atos próprios, resultantes de seus mecanismos de moderação de conteúdos, tais como recomendação, impulsionamento e publicidade —para o que as empresas são pagas—, derrubada de perfis e redução de alcance de postagens, vem sendo absolutamente ignorada, a ponto de o absurdo de que a internet seria “terra sem lei” ser repetido à exaustão. Esse argumento não se sustenta.

Contamos com disposições constitucionais que elevam os direitos do consumidor ao patamar de garantia fundamental e com outras sujeitando empresas públicas e privadas, nacionais ou estrangeiras, ao poder regulador e fiscalizador do Estado sobre a atividade econômica. Ademais, o MCI é claro ao submeter toda empresa que explore serviços na internet às leis nacionais e ao Código do Consumidor (CDC). E somos obrigados a reconhecer que o CDC traz um regime de responsabilidade bastante eficiente.

Apesar de tudo, há quem insista em afirmar que o estado de caos informacional enfrentado por conta do funcionamento dos sistemas algorítmicos dessas empresas descompromissadas com o interesse público se deve ao artigo 19, que estaria servindo de salvo-conduto para que elas não respondessem pelos graves danos que vêm causando, afetando a segurança de crianças e adolescentes e servindo de instrumento para desestabilizar nossas instituições políticas e democráticas, privilegiando forças da extrema direita —como têm sustentado ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento em curso sobre a constitucionalidade desta disposição legal.

Aceitar esse entendimento significaria admitir que haveria autorização legal isentando determinado grupo de agentes econômicos de responderem por suas práticas comerciais, contrariando todo o arcabouço legal do país. Seria aceitar interpretação desconforme com a Constituição Federal; um equívoco gritante.

Manter o equilíbrio do regime de responsabilidade do MCI, desenhado com base em amplo debate democrático, é fundamental na conjuntura que enfrentamos. Amputar o art. 19, cuja finalidade é assegurar a liberdade de expressão e impedir um sistema de censura privada, evitando a derrubadas arbitrárias e massivas de conteúdos por mera notificação extrajudicial e de acordo com interesses econômicos e ideológicos das plataformas, resultará em conferir mais poder a empresas que, publicamente, vêm resistindo ao poder regulatório e soberania, sequestrando o funcionamento do Legislativo.

Lembremos do lobby que fizeram para, com a ajuda de Arthur Lira, enterrar o PL 2.630/20, que se propunha a regular a liberdade, responsabilidade e transparência na internet. E, agora, para ceifar garantias do PL 2338/23, relativo à inteligência artificial.

A falta de adequação dos termos de serviço das plataformas às nossas leis resulta da omissão de órgãos do Ministério da Justiça, da Secretaria de Políticas Digitais e Procuradoria de Defesa da Democracia, que devem atuar para impor compliance, responsabilizando-as por colocarem seus sistemas a serviço da desinformação, discursos de ódio e crimes.

Abdicar do art. 19, instrumento central para a defesa da democracia, responsabilizando as plataformas por conteúdos de terceiros —será um erro pelo qual pagaremos caro.

Por Flávia Lefévre Guimarães – Advogada, mestre pela PUC-SP e conselheira do Instituto Nupef (Núcleo de Pesquisas, Estudos e Formação)