
A Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei (PL) Antifacção na noite do dia 18 passado. O placar folgado – 370 votos a favor e 110 contrários – reflete o peso que o tema da segurança pública assumiu no País. Mas a votação também expôs, mais uma vez, o vício de transformar uma questão de Estado em arena de disputas político-eleitorais. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva queixa-se de que o texto original encaminhado ao Congresso foi descaracterizado pelo relator, o deputado Guilherme Derrite (PP-SP). É verdade que, aprovado em sua sexta versão, o substitutivo de Derrite avançou por caminhos próprios e ignorou parte das sugestões do Executivo. Mas é igualmente verdadeiro que o Palácio do Planalto, na verdade, busca disputar a paternidade de uma agenda que mobiliza a sociedade brasileira, o combate ao crime organizado, com eleição de 2026 dobrando a esquina.
Apesar desse ruído, o texto aprovado, em linhas gerais, é razoável. Há acertos claros. O primeiro deles é a recusa do relator em ceder à pressão de enquadrar facções como PCC e Comando Vermelho como grupos terroristas. Essa equiparação, defendida pela bancada do PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, e por governadores de oposição, como Cláudio Castro (RJ) e Ronaldo Caiado (GO), seria um erro conceitual grave e abriria espaço para eventuais intervenções estrangeiras no País. Também merece registro a preservação das prerrogativas da Polícia Federal (PF), instituição central na investigação financeira e estrutural das organizações criminosas, como de resto mostrou a Operação Carbono Oculto, que atingiu de forma inédita os tentáculos financeiros do PCC na economia formal.
Outro ponto positivo é a inclusão das milícias no escopo das organizações criminosas, sanando uma lacuna da Lei 12.850/13, a Lei das Organizações Criminosas, que dificultava o enquadramento legal desses grupos. Além disso, o projeto avança ao aumentar penas e endurecer critérios de progressão de regime para integrantes de facções, especialmente diante da nova tipificação de “domínio social estruturado”, que captura condutas típicas do poder territorial exercido por criminosos contra comunidades inteiras e servidores públicos.
Dito isso, ainda há motivos de preocupação. O mais grave é a opção de Derrite por criar um marco legal completamente novo, em vez de atualizar o arcabouço penal já existente, como propunha o governo. Essa decisão abre brechas para conflitos normativos entre o novo texto e a legislação vigente, em especial com a Lei das Organizações Criminosas. A divergência de tipificações e penas entre os dois diplomas legais certamente será explorada pelas defesas dos criminosos, com potencial para anular processos ou favorecer interpretações mais brandas de suas condutas. Em se tratando de crime organizado, insegurança jurídica não raro resvala para a impunidade.
Também é de lamentar a ausência de uma agência nacional antimáfia, nos moldes italianos, capaz de integrar forças policiais, Ministérios Públicos e órgãos de inteligência financeira. A fragmentação institucional é uma das maiores barreiras ao enfrentamento das facções: Estados não compartilham informações entre si, e, dentro deles, as Polícias Civil e Militar frequentemente trabalham como se fossem forças estanques. A agência foi sacrificada sob o altar do corporativismo.
Outra lacuna imperdoável do projeto diz respeito ao enfrentamento armado das facções. Em Estados como o Rio de Janeiro há, na prática, um conflito armado não-internacional entre facções e as forças de segurança pública. A retomada de territórios dominados pelo crime organizado exige operações complexas, que ainda carecem de marco jurídico claro.
Cabe agora ao Senado a responsabilidade de corrigir rumos e aperfeiçoar o que precisa ser aperfeiçoado. A escolha do senador Alessandro Vieira (MDB-SE) como relator é auspiciosa. Vieira combina independência política, racionalidade e experiência direta na segurança pública, atributos indispensáveis para conduzir um debate maduro sobre o projeto num ambiente já capturado pelas paixões eleitorais. O País não pode desperdiçar a oportunidade de construir um arcabouço sólido, claro e eficaz. Que o Congresso entregue à Nação a lei de que ela de fato precisa.
Por Notas & Informações – Estadão





